Belle de Jour. França, 1967, 101 minutos, drama. Diretor: Luis Buñuel.
Direção, roteiro e atriz principal perfeitos - isso faz com que "A Bela da Tarde" seja uma das obras francesas mais elogiáveis do século passado e decerto uma referência para o cinema.
O que motivou a assistir a esse filme foram basicamente três motivos: ele foi sugerido para mim pela Jacqueline; eu queria ver uma obra com Catherine Deneuve e Luis Buñuel; e recentemente li comentários interessantes sobre esse filme no livro The Secret Language of Film, do roteirista francês Jean-Claude Carrière, que é também o responsável pelo enredo de Belle de Jour.
Devo dizer que diante da primeira cena do filme, eu já me senti extasiado – Séverine é uma mulher casada que está acompanhando o marido a algum lugar. Por causa de sua atitude frígida, o marido pára a charrete e pede aos condutores que removam a esposa e lhe punam, situação da qual percebemos que ela gostou. Esse não é um resumo do filme, é apenas a descrição da primeira cena do filme, que registra uma fantasia sexual de Séverine, que busca experiências diferentes daquelas que já experimentou e que busca uma sensação nova, a qual não consegue encontrar nos braços do marido. É isso que a motiva a se tornar a “Bela da Tarde”, uma prostituta no bordel de Madame Anaïs. O seu epíteto provém do período em que trabalha, somente à tarde, das duas às cinco horas.
Sévérine, com o noivo, momentos antes de um de seus constantes devaneios.
Os trabalhos de Carrière e Buñuel são mesmo fantásticos. Devo afirmar que poucas vezes vi um roteiro e uma direção que conseguem tão bem inserir o espectador no mundo perturbado do protagonista do filme. É exatamente isso que acontece quando acompanhamos a história de Séverine e as duas vidas que ela leva: uma como esposa delicada do médico Pierre, outra como a prostituta que trabalha numa casa atendendo a diversos clientes, sem nunca lhes dizer “não”. Gosto especialmente de duas características e atribuo a primeira ao roteirista e a segundo ao diretor. Séverine é uma mulher distinta das prostitutas que trabalham com ela sob a supervisão de Mme. Anaïs. Podemos perceber pela sua postura que ela não faz parte daquele lugar, que ela é uma intrusa e não pertence àquele nível. Basta olhar para a sua postura, para o modo como ela olha, pelas roupas que veste. Curiosamente, percebemo-la também como uma peça fundamental daquele quebra-cabeça – ela precisa estar ali. Aquele lugar parece só funcionar se ela estiver junto. Notemos como a personagem a princípio teme e depois cede; não cede apenas, cede com vontade de ceder. Um homem estrangeiro chega à casa, apresenta a uma garota uma caixa e a sua reação é espantar-se e negar. Séverine, mesmo diante do objeto que zumbe dentro da caixa, aceita a proposta do homem – proposta que nem sequer é esclarecida, haja vista que não há legendas nem insinuações maiores a respeito do que aquilo significa. Séverine possui, portanto, a ousadia que falta às outras moças, haja vista que a sua vida é um misto de lembranças estranhas do passado, desejos intensos que são constantemente visualizados em seus sonhos e uma vida que lhe parecia bastante monótona.
Quanto ao segundo elogio que tenho a fazer, esse vai a estrutura fílmica pela qual Buñuel optou. É interessante notar que a presença das fantasias é tão presente na vida de Séverine que ela, às vezes, nem sequer a diferencia da vida real. E isso acaba transparecendo para o espectador, por causa da opção de Buñuel em não demonstrar com ênfase a diferença entre o plano da realidade da personagem e o plano de sua imaginação. Eu mesmo me senti confuso algumas vezes, antes de enfim compreender se era verdade ou sonho. Como disse acima, esse filme sabe como inserir o espectador no universo dos personagens. Algo de que gosto muito nessa obra é o modo como o diretor soube ousar pela temática. Basta observar que a personagem é fria com o marido, pratica o adultério, se insinua para uma mulher (ela tenta beijar Mme. Anaïs num momento), relaciona-se afetivamente com um homem que é bandido, ou seja, ela não atém a nenhum princípio moral. A somar, Buñuel ousa nas cenas de nudez, que são mínimas, uma ou duas cenas, mas elas causam um impacto feroz – Séverine caminha nua, coberta por um véu negro e a visão da personagem de costas é interessante, porque vemos uma nudez parcialmente coberta, meio nebulosa, assim como a própria personagem. Aliás, me pergunto também o que seria da personagem se outra atriz a houvesse interpretado. Catherine Deneuve parece perfeita como Séverine e também como a Bela da Tarde – é perceptível a diferença em sua atuação, ora como frígida e distante, ora alegre e espontânea. Ela decerto compôs uma das personagens mais interessantes do cinema, uma mulher que registra classe e fineza e ao mesmo tempo uma excelente dose de sexualidade. Felizmente, a junção de roteiro, direção e atriz principal é simplesmente uma das melhores que eu conferi no cinema.
A Bela da Tarde pouco antes de entrar em ação.
Acredito que, de certa forma, a personagem desse longa-metragem é capaz de nos proporcionar alguns questionamentos. Eu mesmo fiquei pensando no quão longe eu iria – será que eu faria tudo o que ela fez só para buscar uma satisfação sexual nunca encontrada anteriormente? Acredito mesmo que Belle de Jour seja uma obra muito positiva, que marcou o cinema e que garante entretenimento com qualidade e questionamentos densos. Assim, não posso deixar de sugerir essa obra que realmente me parece inesquecível – quem, afinal, esquecerá a cena na qual Séverine imagina estar presas enquanto lhe atiram barro no corpo? Ou então quem esquecerá as suas maravilhosas expressões de frieza e depois de desejo intenso? Aliás, quem esquecerá a cena final, extremamente simbólica, que pode querer dizer muitas coisas? Enfim: uma obra francesa realmente fantástica.
4 opiniões:
Fiquei realmente muito interessado nesse filme.
tb fiquei com vontade de ver... comofas?
Há tempos que estou ensaiando pra ver esse filme. Buñuel é um gênio absoluto. Já viu O Anjo Exterminador e O Fantasma da Liberdade? Ambos maravilhosos. Como já te disse, interessante que no Lumi7 será postado um texto sobre ele na terça, provavelmente - fique atento! Não só isso, como ambos nutrem semelhanças. E ambos me instigaram ainda mais. Correrei atrás de A bela da tarde!
Um filme muito interessante, que continua moderno.
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