Esse texto foi publicado originalmente no blog O Anagrama, em 23 de junho de 2012.
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Cena do filme Medea, de Pier Paolo Pasolini.
Menos do que um ensaio analítico,
esse texto é simplesmente uma divagação acerca da trajetória do teatro, gênero
literário cujas bases se modificaram ao longo dos séculos e que hoje se
apresenta sobre alicerces bastante diferentes daqueles determinados por
Aristóteles em seu livro, A poética.
Ainda que pareça não ter havido mudança significativa na essência do teatro –
um texto cuja função é ser interpretado em palco –, decerto houve muitas
transformações que fizeram com que tragédias como Electra , escrita por Sófocles, Eurípedes e, numa versão
cômico-irônica, por Ésquilo (lembrando esse que é considerado um dos maiores
nomes da comédia), se difiram notadamente quanto à sua estrutura de tragédias contemporâneas como Vestido de Noiva, escrito por Nélson Rodrigues em 1943.
O teatro clássico, no que tange à
tragédia, define bem o foco de sua narração: os personagens são nobres,
caracterizando a nobreza como a única classe social a ser representada nesse
vertente da dramaturgia. As figuras centrais dessas produções são reis,
rainhas, príncipes, princesas, enfim, nobres a cujas vidas se atribui pompa e
ponderação, além de inevitável associação com a sabedoria, sendo eles, afinal,
que comandam um reinado todo, como é o caso de Egisto e Clitemnestra, pais de
Electra, personagem que culpa a mãe e o padrasto pelo assassínio do pai, verdadeiro
rei, função agora assumida pelo outro homem.
Outras regras também existem: compor
a história de modo que ela seja passível de acontecer num único dia. Isso,
evidente, se refere ao enredo e ao tempo disponível entre o primeiro e o último
ato da peça, não tendo a ver com seu tempo de duração.
Desse modo, vê-se um acontecimento tomando corpo no período chamado por
Aristóteles de “uma revolução solar”, ou seja, no período de um dia, que é
justamente a data específica na qual conheceremos o crescendo e o ápice do
enredo, culminando na catarse, que é o momento posterior à identificação do
espectador com os personagens. Quando pensamos na catarse, aliás, percebemos
que se trata de um dos poucos elementos que persistiram e que ainda é visto
como se via na Antiguidade Clássica.
Se analisar outra peça teatral, Hamlet, de Shakespeare, por exemplo, trata-se
de uma obra moderna que já apresenta notáveis
distinções, sobretudo em relação à duração do enredo, já que ele notadamente se
estende por mais de um dia. Outra característica distinta certamente é o
espaço, que é variado nas obras modernas, mas que se restringia a um único
ambiente nas obras clássicas. Não à toa, vemos todo o desenvolvimento e
desenlace de Electra acontecer em
frente ao castelo, sem jamais vermos outros cenários que não aquele – ouvimos,
por exemplo, o momento final, a consumação da vingança, que acontece dentro do
castelo, mas jamais vemos o acontecimento em si, uma vez que o interior
palaciano não faz parte do nosso campo de visão. Já o palácio de Elsinore, na
Dinamarca, país no qual acontece a trama shakespeariana, nos é apresentado
praticamente na totalidade, com os personagens transitando entre um e outro
ambiente, nos sendo apresentado o pátio e sala reais, a plataforma de
observação, a casa de Polônio e Ofélia e até mesmo os prados que cercam o
castelo.
Notam-se,
ao longo dos séculos, contrastes muito grandes
entre as produções. Shakespeare dista, pelo menos, mil e quinhentos anos de
Sófocles (Electra) e Aristófanes (Os pássaros), e à sua frente, dista
praticamente quatrocentos anos de Oscar Wilde e sua Salomé (1893), escrita em francês no período em que o autor esteve
preso por causa de suas práticas homossexuais. Não há, no entanto, diferenças
significativas entre a produção do inglês e do irlandês, apesar do tempo que os
separa – vemos neles a unidade temporal desfeita (suas tramas podem ou não
acontecer em único dia), vemos a unidade espacial igualmente desfeita. A única
não dissociação da arte clássica, por enquanto, é a representação da nobreza,
já que ainda falamos de personagens reais, como o príncipe Hamlet, cujo pai foi
assassinado pelo próprio irmão, que acabou herdando a coroa e que se tornou alvo da vingança de Hamlet, e como a princesa
Salomé, que tanto queria um beijo do profeta Iokanaan que obrigou o rei a
decapitá-lo a fim de enfim poder beijá-lo, já que ele tanto se recusou a tocar
os lábios dela com os seus. As tragédias, tanto as gregas clássicas quanto as
britânicas modernas, traziam paridades, sobretudo quanto ao objeto de sua
representação, ou seja, os agentes da ação.
Alaíde, Lúcia e Pedro - personagens de "Vestido de Noiva"
Falando de literatura
dramatúrgica nacional e mais contemporânea ainda, abordando já o século XX,
podemos citar três autores cujas obras mostram-se bastante
opostas às prescrições aristotélicas acerca do tempo, ambiente, unidade de ação
e agentes. Falamos de Vestido de noiva
(1943), de Nelson Rodrigues, peça teatral na qual o autor, com bastante sucesso
percorre caminhos tortuosos e a princípio confusos, mostrando a trajetória de
Alaíde, personagem que sofreu um atropelamento e, na mesa de cirurgia, em
delírios, relembra os problemas que teve com a irmã Lúcia, já que Pedro, seu
noivo, fora antes namorado de Lúcia, e, também na mesa de cirurgia, tem
delírios com Madame Clessy, uma prostituta que morou na casa onde sua família
posteriormente residiu.
Se a personagem Alaíde é da
classe média alta, como se vê ao longo da trama, e, justamente por isso, possa
se dizer que há ainda uma relação com a nobreza, todos os outros elementos
caminham em direções opostas, sobretudo a unidade de ação. Electra queria
vingança e toda a trama gira em torno disso, o mesmo se pode dizer, grosso
modo, sobre o desejo de vingança de Hamlet e o desejo de Salomé de beijar
Iokanaan – já na obra rodrigueana, temos uma dimensão espaço-temporal múltipla
que justifica inúmeras ações acontecendo, muitas vezes, ao mesmo tempo – ao longo do enredo, há inúmeras passagens na qual
o palco se divide a fim de dar vida a três momentos: Alaíde e suas conversas
obscuras com a irmã, Madame Clessy e seus ensinamentos sobre a arte de amar e,
às vezes, a sala de cirurgia, na qual Alaíde eventualmente morrerá. A obra
multifacetada de Nelson Rodrigues é surpreendente principalmente pela sua
estética que divide a peça em várias ações – o delírio, a realidade, o sonho –
além de vários tempos – presente e passado – e também vários ambientes – o
hospital, a igreja, a própria casa, o bordel de Clessy.
Chico Buarque e Paulo Pontes
compuseram em 1973 uma atualização de Medeia,
de Eurípedes, tornando-a contemporânea e brasileira: a Medeia da obra grega se
torna Joana na versão nacional e Jasão carrega o mesmo nome, mas agora é um
cantor de música popular que ascende socialmente com a música Gota d’Água, que
dá nome à peça de Buarque e Pontes. Assim como Rodrigues em Vestido de noiva, a obra é bastante
multidimensional em relação à unidade de ação, mas seu grande diferencial em
relação à obra do outro dramaturgo é justamente o fato de vermos personagens
sitos em um conjunto habitacional, quase uma favela, sendo notadamente pobres e
extremamente longe da concretude de nobreza em que vivem Salomé, Electra, Hamlet
e Medeia, por exemplo, ou da alusão de nobreza vivida por Alaíde. Os
personagens de Buarque e Pontes são tão banais e ordinários que sua linguagem
não se difere daquela dita no dia-a-dia (ainda que, evidente, seja respeitada a
estética literária da poesia, já que o teatro é versificado), suas ações não
são diferentes das minhas ou provavelmente das suas: eles vão a bares, bebem
com os amigos, conversam sobre trivialidades, envolvem-se em discussões bobas e
seu linguajar, às vezes, não se mostra todo polido.
A literatura, como se vê,
trata-se de sua própria e constante reinvenção: as obras clássicas são revistas
por outras obras, que são contraditas posteriormente por outra estética
literária, que, num ciclo, é rebatida ou retomada. No caso do teatro, vemos que
o momento catártico se apresenta em todas
as obras, mas os meios de chegar a esse ponto variam muito, justamente pelas
novas adaptações que são feitas de acordo com o contexto histórico-social no
qual vivem os autores e, também, de acordo com as suas intenções – não se pode
dizer que a literatura de Chico Buarque e Paulo Pontes é menor por mostrar
personagens ordinários, justamente porque essa intenção integra a pretensão
estética dos autores. Não se pode dizer, tampouco, que se trata de uma evolução
– nada nos garante que daqui a cem anos a dramaturgia retornará aos moldes
clássicos e voltará a apresentar peças com uma unidade de ação, de tempo, de
espaço e de tom (ou tragédia ou comédia).
1 opiniões:
Belo texto, Luís. Denso e honesto.
O Falcão Maltês
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