Idem. Inglaterra, 1601, tragédia. Autor: William Shakespeare.
Uma peça que vale a pena ser lida, sobretudo para conhecer mais sobre a
escrita desse escritor tão cultuado, mas verdadeiramente pouco lido.
Quando pensamos em William
Shakespeare, rapidamente nos vêm à mente várias frases marcantes, vários nomes
famosos de personagens, além de uma nítida sensação de que estamos falando de
uma criatura de cuja qualidade não se pode duvidar – grosso modo, Shakespeare
tem um status tão celebrado quanto o de Clarice Lispector, salvo que ela é
notadamente mais popular. A imagem mais associada à peça Hamlet com certeza é aquela na qual vemos um homem segurando uma
caveira e fazendo a já batida indagação: ser
ou não ser, eis a questão.
A história do conflito no reino
da Dinamarca é de conhecimento público, sobretudo pelas várias vezes em que a
peça foi apresentada em inúmeras adaptações, seja para o teatro ou para o
cinema, que, aliás, vê no autor uma fonte interessante para realizações. Se
vale como curiosidade, 66 filmes foram feitos tomando como base 22 peças de
Shakespeare até meados dos anos 1950 – definitivamente, o escritor inglês
nascido em Stratford-upon-Avon no século XVI é uma boa fonte para realizações
cinematográficas, seja em títulos que adaptam suas obras, como é o caso de
“Hamlet” (1948), dirigido por Laurence Olivier, seja em títulos que adaptam sua
própria vida, como é o caso de “Shakespeare Apaixonado” (1998), de John Madden.
Mas, como disse, apesar de o escritor render um bocado ao cinema, sua
popularidade não é das melhores.
O que se sabe a respeito de
Hamlet é, definitivamente, a cena supracitada. Não sabem em que contexto ela
acontece, não sabe a que se deve esse questionamento – mas é assim que a peça
foi imortalizada. Hamlet é um príncipe descontente – seu pai morreu
recentemente e, mal se realizou o luto, já ascendeu ao trono o irmão Cláudio,
tendo esse desposado a rainha. O Príncipe Hamlet, antes um jovem bastante comum
– inclusive de paixão secreta com Ofélia, filha de um ajudante real –, se torna
obcecado em descobrir quem é a figura misteriosa que perambula pelo castelo à
noite fingindo ser seu falecido pai. Uma vez descoberto ser aquele o fantasma
de seu pai, Hamlet se ocupa em provar a todos a história por trás da morte do
antigo rei.
Se há algo de que gosto bastante
nessa obra – lembrando-os: li-a traduzida – é o modo como o personagem
principal se entrega totalmente à busca pela verdade acerca de todos os
mistérios do reino. O personagem não se limita a um conflito interno, cheio de
questionamentos sem atitudes que lhe dêem mais força – toda a trama é embasada
por ações fogosas de Hamlet, que se atreve às mais diversas ousadias para
chegar às respostas que tanto quer. Não esconde, também, sua opinião acerca do
matrimônio de sua mãe com o seu tio, ao qual ele várias vezes chama de
incestuoso e criminoso. Num diálogo que se faz entre ele e Horácio, um amigo
seu, expressam-se as opiniões:
HAMLET
Economia, Horácio! A carne assada
Do enterro serviu fria para as
bodas.
Encontrasse eu no céu meu inimigo
Antes que ter vivido aquele dia!
(SHAKESPEARE, 2010, p.
50)
As tramas shakespearianas são
conhecidas pelo modo como todo desenlace – antes de acontecer, quase sempre
muito trágico – necessita antes de um evento que seja extremamente complicador,
que seja de tal modo danoso aos personagens que eles tenham poucas chances de
lidar com quais situações que à frente possam parecer redentoras. Para
Shakespeare – Freud talvez explicasse bem – todo bom desfecho implica cortar o
mal pela raiz, mesmo que isso signifique a extração da vida de todos os
personagens cuja participação na trama pudesse afetá-la de algum modo. E,
logicamente, como todos os personagens tem função, logo um bom resultado é a
morte de todos.
Interessante acompanhar o desenvolvimento
da trama, já que toda ela é capaz de envolver os personagens completamente,
mesmo que sua participação na trama seja minúscula – mas, como disse, não estão
ali sem razão: mesmo Rosencrantz e Guildenstern, amigos de Hamlet, cuja
participação é realmente pequena, tornam-se figuras fundamentais para a
narrativa, já que eles terão sua parte no grande embaraço que se dará em meados
da peça, quando os personagens estarão voltados uns contra os outros num
verdadeiro mal-entendido resultante da intenção do Rei Cláudio de matar Hamlet,
uma vez que seu grande segredo fora descoberto e Hamlet soube como expô-lo em
público. Laertes, filho de Polônio, que por engano foi assassinado por Hamlet,
é induzido a acreditar que o rapaz o assassinou por ódio – assim, Laertes cria
inimizade com Hamlet, cena essa fundamental para os momentos finais, quando o
ódio de Laertes terá crescido devido àquilo que acontece a Ofélia, irmã de
Lartes, também filha de Polônia, que, devido à morte desse, eventualmente
perdeu seus juízos. Num certo momento, Laertes a adverte:
[...] Talvez ele te ame
Agora, e não há mácula ou embuste
Que manche o seu desejo, mas, cuidado:
Ele é um nobre, e assim sua vontade
Não lhe pertence, mas à sua estirpe.
Ele não pode, qual os sem valia,
Escolher seu destino [...]
Teme-o, Ofélia, teme-o, irmã querida;
Conserva o teu tesouro de pureza
Longe do alcance e risco do desejo. [...]
Virtude não escapa da calúnia;
(idem, 2010, p. 56)
Mais tarde, tendo acontecido o
assassínio culposo de Polônio, não custa a Laertes acreditar que é Hamlet o mal
de todo o reino da Dinamarca e que é ele o mais culpado em Elsinore, devendo,
portanto, ser extinto. Shakespeare nos mostra como é extremamente fácil que um
mal entendido se transforme num grande problema, resultando num final tão
medonho que somente poderia ser de uma peça escrita por ele – trágica até não
poder mais. Só acho verdadeiramente difícil acompanhar os personagens e sentir
simpatia por todos eles, já que apenas Hamlet capta nossa atenção. Mas gosto
muito dessa peça pelo seu caráter crítico: todos os personagens mais oportunos
– Hamlet, Laertes, Polônio, por exemplo – apresentam bastantes informações e
críticas acerca das situações vividas por eles. Basta a leitura dos dois
trechos que citei para perceber: num Hamlet critica o casamento às pressas e a
intolerância com o tempo – mal o pai morreu, casaram-se a mãe e o tio; na outra
passagem, Laertes deixa clara a situação a que estão submetidos: sendo Hamlet
nobre – e não apenas nobre, mas também herdeiro do trono –, Ofélia deve atentar
para não se entregar acreditando no amor e nas promessas que o rapaz talvez não
lhe possa oferecer.
Não me furtarei o prazer de
terminar o texto com a famosa passagem (sem imagem de homem segurança a
caveira, porém):
Ser ou não ser, essa é que é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna;
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer – dormir
[...] Quem suportara os golpes do destino,
Os erros do opressor, o
escárnio alheio,
A ingratidão no amor, a lei tardia,
O orgulho dos que andam, o desprezo
Que a paciência atura dos indignos,
Quando podiam procurar repouso
Na ponta de um punhal? [...]
(idem, 2010, p. 118)
Evidentemente recomendo essa
leitura, sobretudo, porque é interessante conhecer mais desse autor, cujas
obras acabam evocadas mesmo em textos posteriores, como os escritos de Virginia
Woolf e James Joyce, autores que compuseram quatro séculos depois de
Shakespeare. Talvez possa não haver uma forte identificação com a trama – ou,
ainda, não haja facilidade na leitura dessa peça –, mas de qualquer forma vale
a leitura, como enriquecimento pessoal.
Referência:
SHAKESPEARE, William. Hamlet, Rei Lear, MacBeth. Tradução de Barbara Heliodora. São Paulo: Abril, 2010, 608 páginas.
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