Conto integrante de Os Cem Melhores Contos Brasileiros.
Machado de Assis, publicado originalmente em 1906.
A ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco.
Não é incomum que ouçamos que Machado de Assis é um dos maiores – senão o maior – escritor brasileiro. Não concordo plenamente com essa afirmação, posto que na maioria das vezes ela é apresentada sem nenhum argumento que a torne consistente. É necessário dizer que, quando se aborda a qualidade estética de uma obra, não se pode deixar levar pelo senso comum ou mesmo pelo histórico: não é porque Machado de Assis compôs dois dos mais importantes livros da nossa literatura (Memórias Póstumas de Brás Cubras e Dom Casmurro) que tudo o que ele faça seja inegavelmente bom.
Ainda que pareça, por causa dessa introdução, que eu vou criticar o conto em questão, vou direção oposta. Só fiz essa introdução para expor o meu ponto de vista em relação a autores canônicos – esses dos quais ninguém ousa discordar. Sem perder mais o foco, vou ao ponto: o conto Pai contra Mãe, publicado originalmente em 1906, no livro Relíquias da Casa Velha, tem uma abordagem bastante intensa no que diz respeito à crítica social e à análise do comportamento humano, principalmente focada no egoísmo. Só pelo momento histórico no qual a história se passa – anos anteriores à extinção da escravidão – podemos notar que haverá um questionamento social aplicável, e há: Cândido Neves e Clara enamoraram-se, casaram-se e procriaram, mas, podres como estavam e fugindo o marido às suas obrigações necessárias, não tinham muito dinheiro. Ele, então, ocupou-se de pegar escravos como forma de trabalho e, assim, tentou garantir o sustento da família.
Logo nos primeiros parágrafos do conto, Machado se dedica a descrever o tratamento anti-humano dado aos escravos, os quais era submetidos a aparelhos de tortura, como a máscara de flandres, cujo objetivo era curar os vícios, tendo “só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado” (ASSIS, 2001, p. 19). Logo depois, narra a coisificação dos escravos – quando fogem, é oferecida uma recompensa para quem encontrá-los e devolvê-los. Numa narrativa bastante imparcial quanto ao que é mostrado, Machado atinge o seu objetivo estético inicial ao descrever com ênfase, mas sem afetação, os transtornos pelos quais passam os negros daquela época. Somente então ele introduz o seu personagem central, Cândido Neves, e a moça que se tornará a sua esposa, Clara. Agora, a crítica se foca em outro aspecto social: a necessidade irrefutável do matrimônio, pois era nisso que Clara pensava. Seus namorados não pareciam bons o suficiente para contrair noivado, apenas queriam “mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras” (p. 21). Conheceram-se num baile, casaram-se onze meses depois.
O personagem de Cândido é composto já nos moldes da escola realista (escola literária que sucedeu o Romantismo, tendo se iniciado em 1881): o homem é narrado sem idealizações, tal qual é, do modo mais fiel à realidade. Assim, Cândido é descrito como desapegado, não há nele qualquer interesse em ser subordinado e atender as ordens das outras pessoas, por isso a dificuldade em se manter em empregos e, posteriormente, a busca por um emprego no qual ele fosse seu próprio patrão. A primeira impressão da personagem assusta o leitor, tamanha o impacto de sua indiferença em relação ao seu futuro – seja pessoal, profissional ou amoroso. O seu relacionamento com Clara parece intenso, prazeroso; parecem amar-se a ponto de construir planos, os quais são pensados impulsiva e insensatamente. Com a vinda do filho, Tia Mônica, parente de Clara e agregada da família, lhes coloca diante do problema maior: sem ter dinheiro, não podem comer – é só uma questão de tempo até a criança morrer de fome; o recomendado, então, seria entregá-la à doação, já que, mesmo trabalhando como “recuperador” de escravos, Cândido já não vinha conseguindo dinheiro suficiente. Deparamo-nos, então, com um aspecto da cultura daquele momento: as crianças rejeitadas pelos pais, por um motivo ou outro, eram levadas à Roda, espécie de engrenagem na qual se punha a criança do lado de fora da casa e que, ao girar, a levava para o lado de dentro da casa, permitindo, desse modo, que os pais não fossem identificados.
A fim de evitar que o filho lhe seja tomado pelos despropósitos da vida, Cândido se vê obrigado a caçar com desespero os escravos fugidos das fazendas e casas da região. Por fim, consegue capturar uma, a quem já havia buscado anteriormente. Ela, desesperada, lhe grita que lhe ignore, que a deixe ir, que finja nunca tê-la visto, pois ela não pode voltar para a fazenda do seu dono, pois, estando grávida, ele a açoitaria o suficiente para que, sem saber, chegasse a matar o seu filho, ao qual já estima. O personagem, no entanto, depara-se com um grande dilema: liberar a escrava e permitir que ela tenha o seu filho ou entregá-la e, em conseqüência, poder ficar com o seu próprio filho? Era as vontades dele, de pai, contra as dela, de mãe. Vale lembrar que tudo confluía para que ele obtivesse o que desejava – ela, afinal, era mulher, escrava e estava enfraquecida de tanto fugir. Nem mesmo as pessoas que a viam sendo arrastada de volta a acudiam – “quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia” (p. 26) e exatamente por isso não a ajudavam – não havia por que, de qualquer modo, pois o comportamento social daquele momento permitia que se humilhassem e maltratassem escravos arredios.
A crítica é bastante explícita: o homem, diante de um acontecimento que lhe pode provocar mal, acaba direcionando-o ao outro. Isso se evidencia na atitude de Cândido, que entrega a escrava ao dono dela, que a açoita até que ela tenha um aborto. Não se pode aqui ignorar a dualidade das metáforas apresentadas: a desgraça dela é, por conseqüência, ainda que indiretamente, a alegria dele; a crueldade dele é, ainda que chocante, dotada de um sentimento bonito – o amor ao seu filho. Machado de Assis não hesitou em compor uma história que se constrói pelo que é belo e que pelo que é feio, ambos os elementos estéticos de fundem e moldam a história, apresentando uma unidade muito consistente, a qual está representada na oração que ilustra essa minha análise. Para que se possa estar feliz, é necessário que se passe por situações infelizes e drásticas e, sobretudo, é preciso que sejam expostos o egoísmo e o calculismo, bem como a frieza e a determinação notadamente perigosas.
Referência bibliográfica:
ASSIS, Machado de. Negrinha. In: MORICONI, Ítalo (org.) Os cem melhores contos brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
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