Um filme musical antifuncional, mas com questionamentos sociolinguísticos muito interessantes.
Eu tenho uma forte atração por filmes musicais. Honestamente, adoro o modo como a música e a dança são contextualizadas nesse gênero de filme – tudo é motivo para que se cante e dance, para que ótimas coreografias ilustrem sentimentos, ações e desejos. Acho, sinceramente, muito interessante conferi-los exatamente por essa razão. Aí, se juntar esse gênero a grandes atores – no caso desse filme, falo de Audrey Hepburn- , é óbvio que se espera uma grande obra. Devo dizer, porém, que eu não a encontrei em My Fair Lady.
Ainda que sempre tenha ouvido falar bastante desse filme, nunca realmente me interessei em vê-lo. Gosto bastante de Audrey Hepburn e pretendia vê-lo, o que eventualmente aconteceria depois de eu assistir a outros filmes dessa atriz. No entanto, por sugestão de uma professora da universidade, que o recomendou pela sua abordagem (que se relaciona à Lingüística), acabei colocando-o à frente de outros títulos. Para ser honesto, a temática do filme é, ao meu ver, muito mais interessante que o filme em si, apesar da belíssima presença de Hepburn e de seu tom absurdamente encantador. A história toda gira em torno de dois personagens – Higgins e Eliza – e uma intenção – fazer com que uma simples florista se assemelhe a uma verdadeira dama. A narrativa se inicia com uma aposta que Higgins, um famoso e soberbo lingüista, faz com seu amigo Pickering quando vê Eliza Doolittle vendendo flores num bairro marginalizado de Londres. Ela, sem qualquer instrução educacional, fala cometendo inúmeros erros de pronúncia e falhas gramaticais, os quais Higgins afirma poder corrigir para que ela participe de um grande evento para a alta sociedade.
Não me restam dúvidas de que essa obra seja mesmo interessante quando nos voltamos para a análise dos recursos e questionamentos lingüísticos – e também sociolingüísticos – que são apresentados. Não vou me estender nesse aspecto, mas é inegável que há uma notável crítica nesse filme: ignorando o contexto social de Eliza, o professor Higgins a trata com superioridade aristocrática, tratando-lhe com desprezo notável e agindo como se ela, por opção, não tivesse recebido a educação escolar necessária. Indubitavelmente, é por esse tipo de preconceito que passam muitas pessoas que não tiveram a oportunidade de freqüentar a escola primária e que, exatamente por isso, não podem comunicar-se “adequadamente”, como Higgins espera que Eliza faça. Ela, muito pobre e não instruída, se vê numa situação complicada, haja vista que não pode fazer muito a respeito da relação de subordinada em relação a Higgins, ao qual ela idealiza, por ser mais instruído que ela. Essa ausência de valorização própria por contaminação também se verifica na sociedade e, para estabelecer uma relação com a literatura, pode ser vista registrada no romance de crítica social Vidas Secas, de Graciliano Ramos – Fabiano, assim como Eliza, tem medo de se pronunciar, porque não sabe que palavras usar e por estar diante de alguém “superior” (no caso dele, o “soldado amarelo”; no caso dela, a classe aristocrática londrina).
Definitivamente, como o filme mostra, não se pode dizer que Eliza não se comunique, haja vista que é possível compreendê-la, mesmo que, às vezes, seja um pouco difícil por causa da diferenciação dos sons convencionados e daquilo que ela efetiva ao falar. Sua dificuldade em pronunciar o h aspirado (como em head = /hed/) provoca dificuldades para o seu interlocutor em reconhecer certas palavras, ainda que não lhe seja impossível entendê-la (pois, como se sabe, somos dotados da capacidade de entender uma palavra pelo contexto do assunto debatido). A questão lingüística abordada no filme é, para mim, muito mais interessante que a trama em si, pois muito no filme me soa superficial e pobre em coerência – desde os relacionamentos entre os personagens quanto os números musicais.
Os personagens são construídos de um modo interessante, mas não vejo muita coerência na relação entre eles. A relação entre Eliza e Higgins é muito escassa para que se depreenda muita coisa e, principalmente, para que se chegue àquele final confuso, no qual não se identifica exatamente o porquê do comportamento anterior de Higgins em relação a Eliza. Não se pode também afirmar muito a respeito da paixão súbita (e das aparições aleatórias) do cavalheiro aristocrático que se apaixona pela figura não-convencional de Eliza e que permanece à porta da casa de Higgins a fim de vê-la. A introdução dos personagens não se dá de modo completamente satisfatório e a presença deles – nem mesmo as suas funções – são suficientes para lhes dar força. Tive essa impressão a respeito da mãe e do amigo de Higgins, bem como do pai de Eliza – são personagens que não acrescentam nada à trama. A respeito dos números musicais, acho-os curiosos. Definitivamente, muitos deles não são musicais – basta analisar aqueles apresentados por Rex Harrison. A música é composta de ritmo e sonoridade e as canções do Prof. Higgins são desconstituídas de qualquer um desses elementos e, às vezes, elas são extremamente compridas – isso torna o filme um pouco cansativo e desinteressante.
Para mim, não há honestamente nenhuma grande atuação. Rex Harrison está bem em seu personagem, que, devido a um tom extremamente plano, não requer muito do ator. Se o personagem sofresse maior modificação do longo da história, decerto me pareceria mais cabível tantos elogios – e até mesmo o Oscar – para o ator. Para mim, todos os elogios provêm do seu filme do ano anterior, Cleópatra, pelo qual pode não ter sido suficientemente elogiado. Já Audrey Hepburn, que foi dublada em algumas canções (já que elas não se adaptavam ao tom de voz da atriz), está acima de Harrison em interpretação, mas, honestamente, eu a prefiro em outros filmes, os quais requerem mais do seu potencial dramático. Acho curioso ser esse o seu filme mais notável; justamente é, das obras que já vi, o que filme de que menos gosto em sua carreira. Suas atuações em Wait Until Dark, Sabrina, Breakfast at Tiffanny’s e The Children’s Hour, por exemplo, são notadamente maiores. Esse filme não é, no entanto, nenhum erro em sua carreira – é apenas uma obra com a qual não me identifico totalmente.
Acredito que conferi-lo valha a pena para se conhecer a obra mais aclamada dessa atriz, mas, de um modo geral, não vejo qualidades artísticas inquestionáveis nessa trama, cujo tom epopeico é desnecessário, já que a história poderia se resumir e caber em 90 minutos em vez de 180 minutos. Não fosse pela presença de Audrey e por aquelas críticas sociais que apresentei acima, eu decerto teria assistido o filme em três partes. Recomendo a obra, mas não dou a ela todo o valor que se dá, porque não vejo tantos pontos positivos aqui.
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