10 de mar. de 2011

Acerto de contas, vingança, coragem e ódio:

Para estrear a nova sessão do blog, dedicada a discorrer a respeito de assuntos interessantes que frequentemente são abordados pela literatura e pelo cinema, convidei o Marcelo Antunes, editor do blog Diz que Fui Aí..., para escrever sobre o tema "A Retroalimentação da Violência", o que ele fez muito bem, devo dizer. Abaixo segue o seu artigo, sendo essa mais uma de suas várias participações aqui.
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A violência retroalimentada em quatro obras


Em 1895 (ou 1896, segundo alguns), os irmãos Lumiére exibiam, pela primeira vez, “L’Arrivée Du Trem Em Gare De La Ciotat”. Reza a lenda que a audiência, espantada pelas imagens da locomotiva em movimento, gritou e correu para o fundo da sala, temendo que a mesma saltasse da tela e viesse ao seu encontro. Curiosidades à parte, tal episódio ilustra algo sobre qual alguns estudiosos se debruçam, há algum tempo: o cinema não é apenas puro entretenimento. É, acima de tudo, elemento de grande relevância social. Isso fica bem claro se analisarmos que as primeiras imagens capturadas traduziam exatamente fatos e eventos corriqueiros, cotidianos - como a chegada de um trem à estação, por exemplo -, dando a oportunidade de, muitas vezes, os próprios protagonistas se tornarem, mais tarde, espectadores desse registro.

Durante a década de 1970, estudos relacionando Cinema e História foram elaborados por nomes como Marc Ferro (1), conferindo à sétima arte status de fonte documental e corroborando esse ponto de vista. Isso só foi possível graças à discussões, no campo historiográfico, acerca da diversificação das fontes históricas; o que esteve diretamente ligado a um movimento de renovação, na historiografia francesa, conhecido como “Nova História”. Foi esse movimento que consagrou a “história das mentalidades”, já anunciada na École des Annales (2), que dizia que as sociedades poderiam ser estudadas e explicadas através de tudo o que o homem produz e representa. Outras correntes embarcaram na discussão, como os “Estudos do Imaginário” que preconizavam um novo papel para os documentos literários e artísticos.

 Michel Vovelle (3) destaca que filmes poderiam ser considerados como documentos históricos, sugerindo, inclusive, uma aproximação dos historiadores com a semiologia e a psicanálise, ampliando assim, seu campo de pesquisa. O presente artigo não pretende, apesar de toda introdução relacionando cinema e história - uma escolha puramente pessoal, por tratar-se de minha área de formação -, discutir o assunto sobre esse viés, mas sim, lançar um breve olhar sobre o tema violência. Para isso, nos ateremos em algumas obras específicas. São elas os filmes A OUTRA HISTÓRIA AMERICANA, IRREVERSÍVEL, MARCAS DA VIOLÊNCIA e o conto O COBRADOR, de autoria de Rubem Fonseca. Abaixo, apresentaremos, inicialmente, um breve resumo de cada um desses títulos:

O COBRADOR
O Cobrador foi publicado, originalmente, no livro do mesmo nome, em 1979. Nele, somos apresentados ao personagem principal, que conduz a narrativa em primeira pessoa. Logo nas primeiras linhas, o encontramos diante da porta de um consultório dentário, onde, aparentemente, foi procurar remédio para a dor de dente que o atormenta. Depois de esperar meia hora, o dentista o atende e, depois de verificar que será necessária uma extração, repreende nossa personagem, perguntando como ele deixara que os dentes chegassem aquele estado. Serviço feito e cobrado, ocorre o inusitado: o narrador simplesmente se nega a pagar. O dentista tenta impedi-lo, quando percebe que o mesmo se encaminha para a saída. O paciente, no entanto, é enfático: “Eu não pago mais nada, cansei de pagar (...) agora eu só cobro!”

E é exatamente assim - O COBRADOR - que ele se autodenomina, nas próximas linhas do texto - título esse que justifica o nome da obra. A explicação para a atitude tomada - ele quebra literalmente todo o consultório e, não satisfeito (“eu devia ter matado aquele filho da puta“), dá um tiro no joelho do dentista - é que o mundo inteiro lhe deve. O mundo inteiro lhe devia comida, dinheiro, dentes e até mesmo buceta. Esse é apenas o início da imensa conta que a personagem decide cobrar da humanidade. Seu acerto começa quando atinge, com o seu 38, um rapaz que dirigia uma Mercedez. Daí para uma série desenfreada de atos violentos é um pulo: logo depois, ele mata um muambeiro que tenta vender-lhe um rádio. Ainda dá cabo da vida de um casal grã-fino, saindo de uma festa na Vieira Souto e de um executivo freqüentador de uma casa de massagem, entre outros. O curioso é que ele parece ter compaixão daqueles que, de certa forma, são seus companheiros de infortúnio. Observa-se isso quando ele relaciona-se sexualmente com uma “coroa” que encontrou na rua e que leva uma vida medíocre, num quarto e sala, bebendo “porcaria” e lendo sobre a vida dos ricos na Vogue. Ou quando o “crioulo” de poucos dentes, que, mesmo sendo hostil quando lhe pede o jornal emprestado, recebe, como permuta pela leitura do noticiário, um sanduíche e um refrigerante. Ou então quando conhece a moça que mora no edifico de mármore que, durante um passeio a Petrópolis, diz que já tentou se matar. Essa moça, aliás, desempenhará papel fundamental na condução da obra - e que, por motivos óbvios, não será revelado aqui.

IRREVERSÍVEL
Em 2002, o diretor franco-argentino Gaspar Noé, leva às telas o filme IRREVESÍVEL. Com o elenco encabeçado pela bela Monica Belucci, o longa nos apresenta a história de Alexandra - ou simplesmente Alex. Alex namora Marcus, mas ainda mantém um forte vínculo com Pierre, seu exmarido. Marcus e Pierre são o extremo oposto, um do outro: enquanto o primeiro é inconseqüente e passional, Pierre intelectualiza tudo, buscando explicação lógica para as coisas. Talvez, o grande ponto em comum deles seja exatamente o amor que nutrem por Alex. Marcus é loucamente apaixonado pela namorada. Pierre ainda a ama, mas permite que ela toque sua vida.

Certa noite, os três decidem ir à mesma festa. Alex, preocupada com Pierre, o incentiva a se aproximar de algumas garotas. Marcus se droga e Alex percebe, começando um desentendimento entre os dois. Aborrecida, diz que vai embora. O ex-marido lhe oferece companhia, ela nega. Orientada por uma prostituta, Alex resolve tomar o caminho de um túnel para chegar ao outro lado da rua. Nesse instante, ela encontra então, o seu destino: um cafetão espanca um travesti. Para não ser notada, Alex foge, mas o cafetão a alcança, a estuprando e violentado em seguida.

Quando saem da festa, Marcus e Pierre encontram uma ambulância socorrendo uma pessoa. Mais próximos, descobrem tratar-se de Alex. Revoltado, Marcus jura vingança, a qualquer custo. Pierre tenta dissuadi-lo, em vão. É quando dois homens dirigem-se a eles, oferecendo ajuda e sugerindo uma vingança contra quem cometeu a barbaridade. Marcus inicia sua busca atrás do malfeitor. Pierre o acompanha, no papel de voz da razão.

MARCAS DA VIOLÊNCIA
Os efeitos da violência na vida de um pacato cidadão é o mote de MARCAS DA VIOLÊNCIA, filme dirigido por David Cronemberg, em 2005, e estrelado por Viggo Mortesen e Maria Belo.

Mortesen é Tom, proprietário de uma lanchonete, numa cidadezinha interiorana. Casado com a bela Edie, é pai de dois filhos e toca a sua vida tranquilamente, até que, em seu caminho surgem dois assaltantes que ameaçam matar suas garçonetes. Tom, surpreendentemente, mata os dois bandidos e sua história para na mídia, sendo aclamado como o novo herói local.

Baseada numa graphic novel, de autoria de John Wagner e Vince Locke, o filme mostra o quão é difícil voltar atrás depois que se ganha determinada reputação. Depois dos acontecimentos na lanchonete, a vida de Tom transforma-se e surge, em seu caminho, o misterioso Carl Fogarty que, segundo o xerife local, trata-se de um mafioso da Filadélfia, recém-saído da prisão. Carl aparece, um dia, no estabelecimento de Tom e o chama a por outro nome - Joey. O filme aborda a questão da violência de maneira muito direta, chegando a algumas vezes, sugeri-la como algo positivo.


A OUTRA HISTÓRIA AMERICANA
Denso, polêmico, provocador - eis alguns dos adjetivos para a história de Derek, o líder da delinqüência do bairro. Levado às telas em 1998, por Tony Kaye, somos apresentados à história a partir da morte do pai do rapaz, um bombeiro, assassinado, por marginais, durante o trabalho, num bairro negro. A partir de então, Derek inicia um ódio violento por negros, imigrantes e judeus. Recrutado por uma organização neonazista, o rapaz mata dois negros - com requintes de crueldade - quando estes tentam roubar-lhe o carro. Derek é preso, condenado, mas, na penitenciária, passa a integrar um outro grupo neonazista. Após questionar o grupo acerca de alguns propósitos, é estuprado no chuveiro com tanta violência que vai parar no hospital. Ali, recebe a visita de um ex-professor - negro - que o alerta para o rumo que o irmão de Derek, Danny, vem seguindo. O professor leva Derek a refletir sobre a vida e mudar seus conceitos, principalmente após a aproximação com outro prisioneiro, também negro. Três anos depois e disposto a mudar de vida, Derek é libertado.

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Sinopses apresentadas, é hora de se pensar na questão que este artigo pretende elucidar. Está claro que o tema violência é comum às quatro obras. Personagens desajustados, em busca de vingança, ou um cidadão aparentemente pacato que, repentinamente, é capaz de um ato cruel - todos eles são ou vítimas ou praticantes da violência.

Mas o que há em comum entre eles? Como a violência se apresenta em cada uma das histórias?

Em O COBRADOR e IRREVERSÍVEL, encontramos personagens com uma missão. A do primeiro era cobrar do mundo tudo aquilo que lhe fora negado. Do segundo, é vingar o estupro e violência da namorada. Todos eles possuem um ponto de partida: em A OUTRA HISTÓRIA AMERICANA, o acerto de contas de Derek com os “caras” que tentaram roubar o seu carro, levou-o até a prisão. Vou mais longe: a morte do pai, responsável por todo o seu ódio contra minorias, foi, de certa forma, a força motriz de todo o processo. Em MARCAS DA VIOLÊNCIA, o ato corajoso - e surpreendente - de Tom, faz com que ele seja aclamando como o herói da cidade.

O que se torna claro, observando o conto e os livros é que, em todos eles, um episódio violento desencadeia toda a ação. Podemos, portanto, afirmar que há uma retroalimentação (4) da violência.

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Esse conceito fica bem claro, lançando um olhar mais apurado nas obras citadas. Em IRREVERSÍVEL, por exemplo, onde a ação é narrada a partir do “fim” da história, percebemos isso conforme o desenvolvimento do enredo. O personagem Marcus que, inicialmente nos é apresentado como doce e amável, termina - ou inicia - a história como um verdadeiro “animal”, querendo vingança a qualquer custo. Digo inicia porque é essa a lógica do filme, conforme afirmei, algumas linhas acima: a primeira cena exibida é justamente de Marcos brigando numa boate gay.

Todas as obras seguem uma lógica parecida. Se em O COBRADOR, há uma onda crescente de violência, com um final surpreendente, em MARCAS DA VIOLÊNCIA nos deparamos com um Tom que tem um acerto de contas com o seu passado. Em A OUTRA HISTÓRIA AMERICANA, todo o ódio e violência depositado contra aqueles que Derek odiava, acabou, no fim das contas, respigando sobre ele mesmo - ou sobre o seu irmão, para ser mais exato.

Quais seriam os destinos de cada uma dessas personagens, caso não tivessem, cada um, sua motivação para seguir adiante nos seus intentos? Ora, é claro que não haveria história para ser contada, ou no mínimo, uma outra história, completamente diferente dessas que conhecemos. Vale agora ressaltar que todas elas, tanto o conto quanto os filmes, possuem excelentes qualidades artísticas e técnicas, sendo entusiasticamente recomendadas a todos que apreciam boa Literatura e bons filmes - ou os que simplesmente se interessam em conhecer um pouco mais do espírito humano.

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NOTAS:
1. Historiador francês, pioneiro nos estudos da relação entre Cinema e História.
2. Movimento historiográfico fundado por Lucien Febvre e Marc Bloch, em fins da década de 1920, que propunha uma História além da mera crônica dos acontecimentos.
3. Um dos maiores pesquisadores franceses, atualmente faz um trabalho da história social e religiosa da morte.
4. Retroalimentação - conceito largamente usado na Psicologia, Biologia, Engenharia, Teorias de Sistema e Controle, segundo o qual parte do sinal de saída de um sistema é transferido para o sinal de entrada com o intuito de diminuir, amplificar ou controlar a saída.

BIBLIOGRAFIA:
BARROS, José D’Assunção. Cinema e História - a função do Cinema como agente, fonte e representação da História. Ler História Lisboa: 2007, nº 52, p.127-159.

KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, nº 10, 1992, p. 237-250.

< http://pt.wikipedia.org/wiki/Retroalimenta%C3%A7%C3%A3o > Acessado em: 02 de março de
2011.

2 opiniões:

Luiz Santiago (Plano Crítico) disse...

Caramba!

Em primeiro lugar, parabéns pela postagem, a nova sessão é maravilhosa. Depois, essa abordagem incrível. Curti demais o texto. Nada como ter blogs de gente inteligente para ler. Fenomenal mesmo.

Abração

Alan Raspante disse...

Ual! Muito bacana esta seção do blog. Muito bem feita e escrita! Dos citados eu vi "Irreversível", filme que gosto bastante e verei agora [coincidência] o filme "Uma História americana"...

abs.