30 de jan. de 2012

Original e Remake: A Hora do Espanto

Já  há algum tempo leio os textos - muito bons, aliás - que o Alan Raspante, dono do Satélite Assassino, escreve em seu blog e sempre gostei do estilo de escrita do rapaz. Assim, não via por que não convidá-lo para escrever um texto para o Literatura e Cinema, convite que ele prontamente aceitou, fazendo do texto abaixo a sua primeira participação aqui. E espero que outras venham em breve e que a nossa parceria se prolongue.

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por Alan Raspante
 
"A Hora do Espanto" (1985), creio, nasceu de uma forma bastante discutível. Afinal, qual a verdadeira intenção do filme? Se você parar para analisar, "A Hora do Espanto" não possui nada em que possa haver uma discussão ou algo parecido. É apenas um filme que nasceu para arrecadar cifras gigantescas no cinema. E foi dito e feito. O filme foi um verdadeiro sucesso e garantiu algumas continuações. E até serviu de inspiração para outros filmes como caso de "Os Garotos Perdidos". A história realmente não é grande coisa, mas o filme possui qualidades insuperáveis (nem tanto) e aquela sensação de velha infância. Eu sei que nem deveria tocar neste assunto, mas é impossível não ver "A Hora do Espanto" e não pensar que a década de 80, talvez, tenha sido a melhor década de todos os tempos. O clima aventuresco presente no filme é de uma ingenuidade ímpar, mas consegue cativar da melhor forma possível. O vampiro Jerry consegue exatamente isto: cativar a sua platéia. Algo que muitos vampiros atualmente não conseguem. Sim, isso foi uma indireta para o Edward Cullen. Aquele vampiro vegetariano que ainda não descobriu a pinça para dar um jeito naquela sobrancelha desastrosa.

 Jonathan Stark e Chris Sarandon: o aprendiz de vampiro e o vampiro-mestre.

A história é simples, Charley (William Ragsdale) começa a achar estranho o comportamento do seu novo vizinho, Jerry (Chris Sarandon) e acaba descobrindo que o mesmo é um vampiro. Afinal, assassinatos vêm acontecendo atualmente e o adolescente acaba presenciando um desses assassinatos (ou melhor: ouvindo). Charley chama a polícia, tenta impedir que a sua mãe convide o vampiro para entrar em sua casa e tenta até mesmo transformar o seu quarto em uma feira ao apostar no velho mito de quê vampiros e alho não se misturam. Claro, o pobre jovem não obtém sucesso e ainda por cima vira a caça principal do vampiro Jerry. Em paralelo, acompanhamos um desgaste no relacionamento do protagonista com a namorada, Amy (Amanda Bearse). Claro que, esta história paralela é pura encheção de linguiça e vai apenas servir de trampolim para o fato da jovem ser a cara de uma antiga paixão de Jerry. Ou seja, "A Hora do Espanto" não é muito inovador em seu roteiro e nem tenta isso. Do mesmo modo como o filme não consegue ser suficientemente bom como um filme de terror. Mas, digamos, que o filme não precisava ser bom nesses dois aspectos. "A Hora do Espanto" vai um pouco mais além.

Colin Firth reprisando o personagem que foi de Chris Sarandon.
O filme, em suma, é despretensioso. Talvez essa seja a maior qualidade do filme. É impossível esperar por algo plausível ou verdadeiramente bom de "A Hora do Espanto" e por isso acaba sendo uma surpresa que o filme consiga ser, ao menos, tão divertido assim. O roteiro clichê possui um bom desenvolvimento e tenta ao máximo criar um bom clímax final. O personagem interpretado por Chris Sarandon, o vampiro Jerry, consegue ganhar a simpatia do seu espectador. Afinal, Jerry não é explicitamente um vilão. Ele apenas possui uma natureza que o leva a agir desta forma. Sem contar que o filme possui excelentes efeitos especiais. Desses que de tão ruins, acabam convencendo e sendo divertidos. Os efeitos são pura nostalgia e até mesmo uma aula cinematográfica. Afinal, houve um verdadeiro esforço para que o resultado fosse o mais aceitável por isso. "As Hora do Espanto" de 1985 é pura nostalgia e acaba arrancando aquela sensação tão bem tratada no último filme de Woody Allen: seria melhor termos nascido na década de 80.

Remete sutilmente a "A Morte do Demônio" (1981).

Como você, meu caro leitor, deve saber, "A Hora do Espanto" ganhou um remake no ano passado (2011). Fui conferir o filme com muita expectativa. Não que eu estivesse esperando por algo melhor que o original, e sim pela curiosidade em saber como "A Hora do Espanto" pode ser visto no ano de 2011: quase trinta anos depois. O que aconteceria com aquele tom ingênuo tão presente na fita oitentista? Enfim, claro que o remake não conseguiu revitalizar isso, muito pelo contrário. Mas acabei me surpreendendo ao ver que o filme atual não ofende ao filme original. As mudanças são tão grandes, que este filme atual poderia ter outro nome e dizer apenas que se baseia no filme original. Claro que o remake é discutível e diferente do original, foi apenas concebido para tentar conquistar uma fatia daqueles que gostam de "Crepúsculo". O tirou -neste sentido- saiu pela culatra. Pois o remake não obteve o sucesso esperado. O motivo de não ter este sucesso eu não sei explicar, mas posso afirmar o que já disse no início deste mesmo parágrafo, "A Hora do Espanto" é um filme completamente diferente do que eu podia esperar.


 O encontro do adolescente com o vizinho vampiro.

Para começar, a cena inicial não é a mesma do filme original. Logo de início já vemos o vampiro em ação. O personagem principal consegue ser mais idiota que a versão original e a mãe do protagonista ganha mais destaque. Sem contar que mudaram a cidade onde tudo acontece e principalmente a forma como as situações acontecem. Peter Vincent é mais novo, possui namorada e não é apenas um apresentador de um programa de televisão, e sim um mágico ilusionista que tem certa obsessão por vampiros. O personagem principal ganha contornos mais complexos por namorar a garota mais bonita do colégio e, claro, vemos mais cenas de ação. O roteiro que também foi escrito por Tom Holland (diretor e roteirista da obra original) tenta trazer de volta aquele clima de aventura, mas tudo acaba sendo confundido com adrenalina. Não há uma sensação crescente, apenas cenas que tentam ao máximo levar o seu espectador ao delírio. O filme consegue entreter, mas não chega ao ponto crucial. Em um resultado final, não posso negar que eu gostei, mas, obviamente, não consegue superar o original. Porém, o filme não deve ser deixado de escanteio ou ter ser esquecido. Assim como o original, é um filme feito para arrecadar bilheteria e possivelmente entreter. Simples assim.

28 de jan. de 2012

Oh! Rebuceteio

Brasil, 1984, 74 minutos, comédia pornochanchada. Diretor: Cláudio Cunha.
Confesso que esperava pouco do filme, mas ele tem cenas geniais além de ótimos diálogos que me fizeram rir bastante.

Confesso que a minha primeira incursão no subgênero pornochanchada foi com esse filme de Cláudio Cunha, que já havia lançado anteriormente outros títulos que seguiam o mesmo modelo de humor. Fiquei verdadeiramente surpreso por ver sexo explícito bem explícito - de um jeito que eu não imaginava que fosse nesses filmes olha que ingênuo que eu sou - mas também fiquei interessado pela história, que aborda um grupo de atores liderados por um diretor que pretende oferecer a peça “Rebuceteio” ao grande público.

Nenê impressionado com o desempenho (sexual) dos seus atores, ainda inexperientes.
Basicamente o enredo se foca nos bastidores, quando os atores estão ensaiando sob a coordenação de Nenê Garcia, o responsável pela peça de teatro; mas o conteúdo é também expandido para outros ambientes, como a casa de Letícia, cuja mãe a incentiva querer o papel principal da peça, e também algumas tomadas externas nas quais vemos, por exemplo, conversas do diretor com o produtor e o arranjador da peça bem como diálogos entre ele e Letícia, por exemplo, no zoológico. Cabe ressaltar, no entanto, que a maior parte desse filme acontece nos palcos, onde todo o sexo acontece.

Num primeiro momento tive a impressão de que o sexo seria o protagonista do filme - e pode-se dizer, de certo modo, que é mesmo. Existe, porém, toda a relação dos atores com a situação na qual estão e ao filme é, sobretudo, a respeito de atores em processo de aquisição da essência experimental daquele projeto. E isso resulta em cenas incríveis, como quando o diretor os divide em grupos e pede que eles improvisem, mostrando aquilo que quiserem: o primeiro grupo apresenta uma dona de casa cuja casa foi invadida por dois bandidos que a renderam e a estupraram, tendo ela, no final, gostado da brincadeira; o segundo grupo apresentou uma dominatrix a castigar o seu escravo; o terceiro grupo apresenta um padre e uma freira seduzidos por uma fiel que vai se confessar; por fim, o melhor grupo, dono da melhor pérola de diálogo, apresenta três crianças muito sensualizadas que estão brincando no quintal - uma amamentando uma boneca, outra pulando amarelinha e a terceira chupando o pênis de um jumento - até que chega um urso que as observa e se masturba, atraindo a atenção das garotas, que decidem “brincar” com ele.

Letícia, a estrela da peça, nos intervalos do ensaio fotográfico que estava fazendo.
O mais interessante é que o filme não disfarça o seu tom sério debochado. Ao longo dele, vemos atuações horríveis muito ridículas, e outras que até nos convencem, como a do diretor, Nenê, que, na verdade, é o diretor Cláudio Cunha. - um dos únicos a não aparecer nu ou numa cena de sexo. Adoro os vários diálogos nos quais ele reforça a importância da metapraxis, que envolve o desenvolvimento dos processos criativos - e devo dizer: que criatividade! O humor do filme se vê nas dicas geniais do diretor, inclusive para o espectador - numa cena, ele nos olha nos olhos e diz firmemente: masturbe-se, gozem gostoso. E o que dizer da mãe de Letícia, que insiste o tempo todo para que a filha dê o melhor de si, inclusive indo aos ensaios dela, convidando os seus amigos para irem à sua casa - é, no mínimo, engraçado, até mesmo quando a vemos na primeira fileira do teatro, batendo palmas para a filha.

Moralistas devem fugir desse filme, decerto não os agradará, tem muitas cenas de pau buceta chupação esporrada lambida no cu nu frontal, ereções, sexo explícito - oral, vaginal, anal. E essas cenas ocupam boa parte do filme, acredito que pelo menos 60% dele. E ainda assim é bastante engraçado, artístico, divertido e inevitavelmente uma obra brasileira que vale a pena ser conferida. E eu digo sem medos: vou procurar mais filmes desse diretor para vê-los.

27 de jan. de 2012

Lucky Blue

Lucky Blue. Suécia, 2007, 30 minutos, drama. Diretor: Håkon Liu.
Assisti a esse curta-metragem e ele não me marcou. Hoje, mal lembro do que ele fala e faz pouquíssimo tempo que eu o conferi.

Por causa da indicação de um colega, eu assisti a esse curta-metragem alemão cujo tema abordado é o relacionamento de dois garotos adolescentes que se conhecem e rapidamente nutrem sentimentos de afeto um pelo outro. O diretor Håkon Liu conseguiu resumir bem a história: o primeiro contato dos garotos parece meio distante, depois, juntos, eles liberam o pássaro que dá título ao filme e, a partir dessa pequena travessura, os dois tornam-se confidentes em algo, já que partilham do erro de ter liberado o passado. Mais tarde se descobrem afins quando um rouba um breve beijo do outro e o diretor soube como captar bem esse momento. Então, vem a negação e, depois, a aceitação – um é afeito ao outro e eles podem admitir isso, mesmo que implicitamente, como na cena final percebemos.

Os atores, que são quatro, estão bem. Tobias Bengtsson e Tom Lofterud, respectivos intérpretes de Olle e Kevin, representam bem seus personagens. Britta Andersson, a tia de Kevin, pareceu-me uma atriz competente, embora eu tenha visto pouco de sua capacidade, já que sua personagem aparece pouquíssimo. A direção de Håkon Liu é correta, sem exageros, sem timidez excessiva – suas tomadas mostram aquilo que necessitamos ver. Considerei este um curta-metragem interessante, que vale a pena ser conferido como curiosidade. Decerto não é a obra mais intensa que já vi, mas mesmo assim consegue cumprir sua pretensão.

25 de jan. de 2012

Minhas Mulheres e Meus Homens

Brasil, 1999, 252 páginas, editora Objetiva. Autor: Mário Prata.
Esse livro nos permite não apenas conhecer mais sobre Mário Prata, mas também nos apresenta inúmeros outros personagens extremamente interessantes e relevantes para a cultura brasileira.

Fiquei meio em dúvida entre comprar esse livro ou não comprá-la. Há muito que não lia literatura brasileira e estava ansioso para conhecer mais das obras nacionais contemporâneas. Esse livro do Mário Prata é desses gêneros que causam confusão: difícil chamá-lo de literatura, principalmente porque o livro na verdade reúne breves explicações sobre pessoas com as quais ele teve contato em algum momento da vida, percorrendo o “breve” período de 181 anos – desde a origem do sobre “Prata” até a época de publicação do livro, datado de 13 anos atrás.

Aqueles que esperam literatura nos seus moldes mais tradicionais – ou seja, uma história linear com personagens regulares – decerto se frustrarão com o que há aqui. Acredito haver inequívoca literatura aqui: toda a vida do autor nos é contada e toda ela acontece com a junção de inúmeros “cacos”, que são as pessoas que ele eventualmente conheceu. Assim, a cada nova pessoa que surge na história, constrói-se a vida – a narrativa da vida – de Mário Prata. Detalhe especial para o fato de, como o autor mesmo escreve, a história poder ser lida de vários jeitos: você pode lê-la linearmente, da primeira página à última, acompanhando a ordem alfabética; você pode pular para os nomes em negrito, que não necessariamente acompanham a ordem alfabética ou cronológica (por exemplo, de Abe, na p. 17, há um nota na lateral da página indicando que a pessoa em questão está conectada com Zuleika, da p. 244); ou, ainda, você pode acompanhar a história pela cronologia, conferindo o final do livro, onde há um índice para guiá-lo.

Eu optei por seguir a ordem cronológica e, assim, recriar mentalmente a trajetória da vida do autor e das pessoas que ele conheceu ao longo de sua vida. E devo dizer que há nomes de muitas personalidades famosas, muitos momentos marcantes, muitos lugares – e isso acaba satisfazendo todos os leitores, que decerto encontrarão com o que se identificar na obra. Não tardou para que eu me identificasse: logo no começo da cronologia, há uma referência à minha cidade natal – Rio Claro. Sobre ela, Prata afirma que em 1968 “estava numa pracinha em Rio Claro, esperando Ticá [Beozzo] sair da faculdade” (PRATA, 1999, p. 231) e sobre o relacionamento deles, diz que “ficou aquela coisa parada no ar, numa cidade onde só fui uma vez” (ibidem). Isso aconteceu há 44 anos, numa época em que Rio Claro felizmente não era alvo de piadinhas no Facebook por ostentar uma versão pífia da Torre Eiffel. Eventualmente conhecemos mais: de Chico Buarque, de Caetano Veloso, Marta Suplicy, de São Paulo, Rio de Janeiro, até mesmo Araraquara, cidade que está relacionada à sua ex-esposa, Marta Góes.

E é importante ressaltar que o autor escreve sem rodeios sobre inúmeros problemas enfrentados por ele e por seus amigos, principalmente a partir de meados da década de 1960, quando a ditadura surgiu para oprimir. Gosto especialmente de uma passagem do livro, quando Prata nos fala sobre Julinho da Adelaide, personagem de Chico Buarque foi obrigado a assumir para poder compor e ter suas músicas aceitas pelos censores, já que a simples menção ao seu nome já fazia com as canções fossem barradas:

Julinho da Adelaide até então não tinha dado uma entrevista, poucas pessoas tinham acesso a ele. Nenhuma foto. [...] Setembro de 74. A coisa tava preta. O Chico já havia topado e marcado para aquela noite na casa dos pais, na rua Buri. [...] Quando eu achava que estava tudo pronto o Chico disse que ia dar uma deitadinha. Quando desceu, não era mais o Chico. Era o Julinho. Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. [...] Era metido a entendedor de tudo. Falou até de meningite nessa única entrevista que deu a um jornalista brasileiro. Julinho não se deixaria fotografar. Tinha uma enorme e deselegante cicatriz muito mal explicada no rosto. [...] Chico inventava, a cada pergunta, na hora, facetas, passado e presente do Julinho. [...] Para mim, o que ficou depois de 25 anos, foi o privilégio de ver o Chico em um total e superempolgado momento de criação. Até então, Julinho era apenas um pseudônimo para driblar a censura. Ali, naquela sala, criou vida. (ibidem, p. 124-126)

Como disse, não apenas conhecemos a história do autor, mas também a história do nosso próprio país e de figuras que foram imensamente importantes para a construção de elementos da nossa cultura. E tudo isso com extremo bom humor e sem nenhum moralismo forçoso que incomode a leitura. Mário Prata faz uso de palavras como “bicha”, “viado”, além de nos contar sem temores momentos curiosos de sua vida sexual (e também da vida sexual dos amigos):

Eu havia operado da fimose há 15 dias. Ainda tinha uns pontos. O que eu sei é que acordei no dia seguinte na cama dela [de Maria Regina, atriz], todo ensangüentado, ainda viajando [por causa do ácido], com a coisa latejando. Parecia uma rosa vermelha mordida por um buldogue. (ibidem, p. 162)

A sua franqueza torna a leitura agradável. Parece uma confissão do autor, como se fôssemos nós amigos dele, como se estivéssemos a acompanhar a sua história sendo dita por ele mesmo, estando à sua frente, numa conversa informal e divertida. E o livro é interessante também para conhecer os “podres” de alguns famosos; acabamos inevitavelmente por enxergá-los bem mais próximos da nossa realidade do que do jeito como normalmente os vemos – míticos, distantes. Acredito que a obra seja extremamente válida para ser lida – como viram na citação longa sobre o Julinho, o livro serve para como um registro de um momento histórico, só que a analisado pelo outro lado. A lista de nomes é vasta, devem ser uns trezentos, mas decerto vale a pena e a leitura é bastante rápida, extremamente recomendada como o que eu chamo de “leitura de transição”, que é aquele momento em que você quer um livro leve logo após ter lido uma obra contundente.

22 de jan. de 2012

Grandes Mentiras

Mentiras y Gordas. Espanha, 2009, 107 minutos, drama. Diretores: Alfonso Albacete e David Menkes.
Talvez eu o consideraria bom se o roteiro não priorizasse o sexo e as drogas em vez dos relacionamentos dos personagens e das suas interações.

Assisti a esse filme por recomendação de um colega e, considerando que algumas vezes ele me recomendou coisas boas – eventualmente, algumas bem ruins também –, eu decidi conferir esse filme intitulado originalmente “Mentiras y Gordas”, título que eu realmente não sei se é melhor do que a obviedade porca do título nacional.

Eu não sei bem o que eu esperava ao começar a assistir a esse filme. Mas eu deduzi pelo pôster que múltiplas histórias seriam contadas e provavelmente entrelaçadas em algum momento da narrativa, conectando então todos os personagens numa “única” trama. E é mais ou menos isso que acontece nesse filme, que fala sobre a relação de vários personagens com o sexo, romances e drogas – não necessariamente nessa ordem e não na mesma intensidade, haja vista que os personagens transam e se drogam em 90% do filme e raramente somos apresentados à parte que diz respeito aos seus envolvimentos amorosos.


Acho que o que me motivou a não detestar o filme foi o excelente humor que eu estava quando eu o conferi. Não poderia mesmo estar mal humorado, afinal, no mesmo dia, eu havia anteriormente assistido aos maravilhosos Rear Window e Belle de Jour, de Hitchcock e Buñuel, respectivamente. E o que me leva a escrever sobre esse filme sem massacrá-lo é também o bom humor do dia, porque se eu realmente o tivesse analisado friamente, como usualmente faço quando vejo filmes, eu decerto o classificaria como uma obra totalmente insatisfatória, haja vista que todo o foco do filme está em cena repetidas de sexo, que, de um modo geral, servem como alicerce dessa obra espanhola, provavelmente foi dirigida por alguém com forte tendência à ninfomania. Penso que a idéia de usar o sexo em demasia possa até sem interessante quando há um motivo que embase isso. Nesse filme, parece haver apenas a vontade de filmar diversas cenas de sexo. Curiosamente, todos os personagens aparecem nus em algum momento e todos têm o seu ato sexual – alguns deles, duas vezes!

O roteiro basicamente se divide nesses episódios: 1) Carola, que tenta ajudar a amiga Paz a emagrecer, pois ela foi abandonada pelo namorado e despedida do emprego por estar gorda. 2) Toni e Nico, que são melhores amigos, sendo que Toni o ama sem que ele saiba. 3) Marina, que se sente em dúvida em relação à sua sexualidade após se relacionar com Leo, outra garota. 4) Sonia que vende drogas para pagar a fiança de Chente, amigo seu que foi preso. Paralelamente a essas histórias, temos ainda uma subtrama envolvendo Carola, que se relaciona com o ex-namorado de Paz. Acredito que em 100 minutos, essas quatro histórias poderiam ser abordadas, mas para isso era necessário que a elas não fosse dado a mesma ênfase – se todas histórias são episódios centrais do filme, torna-se difícil abordar qualquer uma dela com maior cuidado. Assim, tudo que é mostrado é meio superficial e, no caso de Sonia e de Marina, por exemplo, não somente é superficial como ainda é repetitivo, pois acontece três vezes a mesma coisa. Já as histórias mais interessantes, que na minha opinião é a de Carola e de Toni, são meio que deixadas de lado por causa das repetições que já comentei.

Não sei bem como definir os personagens. De um modo geral, acredito que na teoria todos eles tivessem algum nível de emoção. No entanto, ao passar para a prática, os personagens parecem meio bobos, vivendo situações torpes e sendo insistentemente infantis. Só para constar: ao terminar de ver o filme, eu estava provavelmente tão drogado quanto eles, de tantas vezes que eu os vi ingerindo alguma coisa ou puxando uma carreira. Penso que haja indícios ao longo da trama de que os personagens sejam melhores do que parece. Por exemplo, Nico pode recorrer às drogas para esquecer os problemas familiares, pois o pai desempregado lhe causa transtornos ao ficar no bar o tempo todo. A situação delicada de Carola me faz pensar que ela é uma boa personagem, afinal ela quer ao mesmo tempo ajudar a melhor amiga e também ser feliz. Mas a direção complicada de Alfonso Albacete e David Menkes impede que tudo isso se desenvolva muito positivamente. Aliás, a respeito da direção, é difícil dizer o que eles pretendiam com algumas cenas, porque elas são bastante curiosas – isso para não dizer “ruins”. O orgasmo de Marina, por exemplo, é uma das coisas mais ridículas que eu já presenciei no cinema – tentativa de humor ou pura incapacidade dos diretores? Não entendi aquilo. E o que dizer do choro de Paz por não sentir a penetração do rapaz com quem está? Deprimente, no mínimo. Mas cômico ao mesmo tempo – eu ri demais, ri sem parar por uns dois minutos.

Acho que o único momento que esse filme encontra o seu tom adequado é no final, quando registra o coincidente encontro de Carola e Toni, numa cena dramática de intensidade certa, que mostra dois personagens de estilos bem diferentes – um que recorre a atitudes inconseqüentes para suprir o afeto de que precisa e outro que chora e assume a dor sem querer afastar-se dela com drogas; respectivamente, Toni e Carola. E o mais interessante é que fizeram uma cena boa, em que o espectador não julga nenhum dos personagens e até acha bonito o encontro deles. [Spoiler] Acredito que o carisma de Carola atraia a atenção de quem assiste ao filme para si, de modo que reparamos na boa intenção de sua personagem de ajudar Toni, quando percebe que o rapaz está passando muito mal. Digo isso porque momentos depois, quando os dois saem para que ele pudessem tomar ar fresco e ele, por infortúnio do destino, acaba morrendo nos braços da menina, que chora desesperada e grita por ajuda, a direção deu ares mais melodramáticos, criando então uma situação clichê – todos os amigos chegando naquele momento, Nico se jogando no chão, tomando o amigo nos braços. Enfim, se não tivessem saído do tom, a cena seria realmente a única cena excelente do filme. Com erro, a qualidade caiu, mas ainda assim é o melhor momento de toda essa obra. [Spoiler]

Devo dizer que não fiquei totalmente insatisfeito com o filme, mas isso porque eu o conferi num dia em que estava de boníssimo humor, por influência dos filmes que havia visto antes. Não sei se vocês o acharão uma obra válida. A direção é ruim, isso é inegável; o roteiro é meio problemático, com muitos excessos; o elenco provavelmente teria algo destaque se a direção fosse melhor. Então, acho que no fundo não vai mudar muito na vida de vocês se assistirem ou não à essa obra.

20 de jan. de 2012

O Gosto da Vingança

Dalkomhan insaeng. Coréia do Sul, 2005, 120 minutos, policial. Diretor: Jee-woon Kim.Com um grande exemplo de fotografia e com bons momentos, essa narrativa é um prato cheio para espectadores que adoram uma boa história de vingança.



Curiosamente, esse filme me proporcionou uma decepção a princípio e depois uma grande satisfação. Ao tentar baixar “I Spit on Your Grave”, eu acabei baixando “Bittersweet Life” por engano – e me senti muito frustrado e irritado por ter pegado o filme errado. Decidi, no entanto, que, embora tivesse baixado o filme errado, não deixaria de vê-lo só por causa disso. E ao conferi-lo eu percebi que fiz muito, já que O Gosto da Vingança é uma obra bastante interessante.

Gosto muito de como os coreanos são explícitos na violência que mostram. Gosto mais ainda porque acho que eles conseguem ser agressivos de um modo artístico; o impacto provocado é muito diferente de outros tipos de violência, como, por exemplo, aquela a que somos apresentados em Irreversível. A vingança do título se refere àquela que o personagem Kim Sun-woo opta por fazer depois de ser severamente punido por descumprir uma ordem do seu chefe direto. O mafioso desconfiava que a sua namorada tinha um amante e incumbiu Sun-woo de vigiá-la; se as suas suspeitas se confirmassem, ele deveria matar tanto a garota quanto o amante dela. Diante dessa verdade, Sun-woo opta por não matá-los e lhes propões que jamais se vejam de novo. Tal atitude, no entanto, faz com que ele se torne alvo da ira do chefe.

Estando bem longe dos filmes de coreanos que vimos na TV, onde o entretenimento predominante é uma série equivocada de chutes, socos e onomatopéias estranhas, O Gosto da Vingança é embasado numa qualidade muito mais artística e profissional. Desde o começo já fiquei impressionado com a qualidade técnica da fotografia, que é muito bem elaborada e proporciona ao espectador uma visão muito nítida e clara de tudo o que acontece. A fotografia é tão boa que até contrasta com o que vemos em cena, principalmente quando o que é mostrado são as lutas. Decerto a sonoplastia também tem uma função muito poderosa, já que, aliada à fotografia, permite que o espectador quase se sinta em cena. Gosto principalmente do momento final em que há uma mistura excelente de cores, sons e ritmo – tanto pela cena em si quanto pela trilha sonora, que embala muito bem uma impactante cena de chacina.

Ainda que eu tenha gostado do enredo – e do filme como um todo -, não penso que o ponto forte do filme seja a sua história. De certo, é bastante comum o que vemos e até mesmo convencional, já que segue a linearidade padrão dos filmes de vingança: o mocinho toma uma atitude que pensa ser a certa e acaba descobrindo o quão inconveniente pode ser quando se desrespeita uma regra. Depois, dá a volta por cima ao promover uma verdadeira vingança contra aqueles que lhe fizeram mal. Já vimos isso em muitos filmes, só para citar alguns: Kill Bill, Gladiador, A Vingança de Jennifer e todos do Chuck Norris. É claro que é a abordagem que torna esses filmes diferentes e os dois primeiros que eu citei – que foram respectivamente dirigidos por Tarantino e por Ridley Scott – são amostras de que histórias já muito mostradas podem ser muito interessantes. O Gosto da Vingança atinge mais o espectador por aquilo que ele vê e ouve, tal como comentei no parágrafo acima. A história também tem o seu lado interessante, mas definitivamente fica aquém do mérito conquistado pelos elementos técnicos já citados.

A direção de Kim Jin-Woon me pareceu boa, principalmente porque ele soube como escolher entre os melhores ângulos e quais os melhores modos de captar a essência do seu filme. A vingança de Sun-woo é compartilhada com o espectador e muito disso se deve à direção eficiente e à boa atuação de Lee Byung-hun, ator principal do filme. Considerando essa obra como um todo, não me restam dúvidas de que seja mesmo uma produção muito válida e que merece ser vista, porque nela estão inclusos elementos que fazem com que um filme possa assumidamente ser chamado de bom. Recomendo que o vejam, desde que estejam preparados para uma boa dose de violência explícita, que inclui pauladas no rosto, esmagamento de membros e balas na cabeça.

18 de jan. de 2012

Amigas de Colégio

Fucking Åmål. Suécia, 1998, 89 minutos, drama. Diretor: Lukas Moodysson.

Uma história que poderia render bons frutos, mas que, devido a uma deficiência no roteiro, apenas nos traz uma narrativa cansada e introspectiva.

É inegável que filmes que abordam a homossexualidade trazem consigo uma dificuldade em sustentar seu enredo satisfatoriamente, sem pender para a apelação da estereotipação nem percorrer caminhos heroicamente inverossímeis, como vistos, respectivamente, em “Comendo pelas Bordas” (2004) e “Delicada Atração” (1996). Considerando a possibilidade de erro - que é grande -, pode-se dizer que “Amigas de Colégio”, produção sueca de 1998, é um filme que “deu certo”, embora, como apontarei, existem problemas que tangem e trespassam o resultado final.

A história de Agnes nos é contada desde a primeira cena. Conhecemos a garota num momento de introspecção, quando escreve em seu computador os sentimentos que tem por Elin, uma garota da sua escola, uma das mais bonitas, populares e, secretamente, cansada das experiências que já viveu, principalmente com os relacionamentos. Embora tenham apenas 14 anos, as duas parecem bastante confiantes dos sentimentos que têm, mas pouco seguras quanto a como mostrá-los. Quando são apresentadas de um modo mais efetivo, começa entre elas uma relação que vai contra o esperado na pequena cidade de Åmål, onde elas vivem.

 Uma aposta boba com a irmã faz Elin se apaixonar por Agnes.

As protagonistas do filme são garotas de difícil entrosamento e aborrecidas com as suas famílias. Tanto Elin quanto Agnes enfrentam problemas familiares: a primeira com a sua irmã, que, embora boa companheira, parece forçá-la a fazer parte de um modo totalmente diferente do seu; e a segunda não lida bem com a mãe, que insiste em querer enturmá-la, sempre reforçando que seria interessante que ela trouxesse amigos para casa, mesmo sabendo que Agnes não possui amigos, a não ser uma cadeirante, que constantemente aborrece Agnes. Conhecemos os desajustes familiares das duas personagens e partir disso começamos a nos envolver com outros aspectos de suas vidas. Sabemos que as duas estão de certa forma descontentes com a cidade provinciana na qual vivem. Agnes não é natural de lá e Elin acha a cidade pequena demais, muito restrita - seja em espaço ou em forma de pensar. O resultado é que, num conversa, expondo esse tópico, surge entre as duas identificação.

 Primeiro, a identificação; depois, o embaraço: Elin fica em dúvida entre assumir o amor por Agnes e fingir que ama um rapaz.

Mas o problema é compreender de onde vem tamanha identificação a ponto de elas se apaixonarem. Primeiro, já sabemos que Agnes gosta de Elin, mas não há nenhum elemento no filme que faz com que compreendamos o porquê - é tipo o arquétipo da garota que se apaixona pelo professor só pelo fato de ele existir (“Tamara”, 2005) ou o cara que se enamora da garota loira mais popular do colégio (“Um Adolescente em Apuros”, 1997). Ainda que isso não fique muito esclarecido, é perfeitamente possível lidar; o problema reside no amor que surge em Elin - de onde veio e a partir de que momento surgiu? Essas duas perguntas não são respondidas e a lacuna incomoda. Também incomoda o vazio que parece existir nas discussões comportamentais que assolam o filme do seu começo ao fim: Elin se dedica a um envolvimento com Johan e isso é bastante desgastante, porque parece que a trama faz uma incursão num campo no qual não pretende se aprofundar, deixando de lado algo mais importante, a cuja essência se deveria atentar mais. Um buraco imenso separa o começo do amor de ELin por Agens até o momento em que ela decide assumir isso e a impressão que temos é que Agnes é imatura demais - a outra, afinal, parece ir e vir quando bem quer e cabe à Agnes apenas esperar pelos anseios da outra.

Se o tom heróico felizmente escapa à perspectiva da homossexualidade que é mostrada - de modo verossímil, percebemos que a cidade é conservadora demais -, infelizmente também foge um debate mais aberto à relação das garotas e menos focado em elementos dispersos. Não creio que o filme seja ruim, mas honestamente penso que falta bastante para que ele atinja proporções que façam com que ele mereça ser conferido. Apesar de curto, não empolga e chega a cansar em alguns momentos, além de não responder a questões essenciais, como, por exemplo, a relação de Agnes com seus pais depois que eles descobriram a homossexualidade da filha.

16 de jan. de 2012

Perfect Blue

Pâfekuto Burû. Japão, 1997, 81 minutos, thriller. Diretor: Satoshi Kon.
Uma animação bastante adulta, que nos faz fugir do senso de que toda animação é “bonitinha”, e ainda muito bem desenvolvida, nos remete a dois filmes interessantes do cinema norte-americano.

Depois de assistir a “Tokyo Godfathers” (2003), eu fiquei interessado em conhecer mais animações japonesas, principalmente porque elas parecem sair do senso comum que as animações norte-americanas tendem a oferecer. Só para que tenham uma idéia, a animação supracitada tem em seu enredo três protagonistas, sendo um velho bêbado, uma adolescente rebelde e um travesti, todos os eles moradores de rua que encontram uma criança e decidem cuidar dela - bastante ousado, certo? Perfect Blue nos traz a história de Mima, uma garota que decide sair do grupo Cham, banda musical com a qual trabalha há um ano e meio, para se dedicar à carreira de atriz, abandonando, assim, a imagem de ídolo pop. A contragosto da mãe, das colegas de trabalho e dos agentes publicitários, Mima adentra o universo da atuação e descobre que o maior perigo reside na insatisfação dos fãs, havendo um deles capaz inclusive de querer puni-la pela sua “traição”.

Como vocês perceberam, a animação aborda o perigo que a vida de Mima sofre a partir do momento em que ela toma uma atitude que é mal compreendida pelos seus fãs. Podemos perceber que isso é bastante real e o filme não foge ao realismo de mostrar a visão dos fãs em relação aos seus ídolos. Mima também não tarda a perceber que a sua escolha a tornou um alvo de maníacos, já que numa das suas primeiras gravações no set de um seriado de suspense uma carta endereçada a ela explode, ferindo o seu agente. Mais tarde, descobrirá haver uma página na Internet na qual alguém se finge passar por ela, contando a rotina da estrela - o que surpreende a atriz é o fato de a pessoa saber exatamente cada movimento seu, desde as coisas que ela compra no supermercado até o que ela faz em seu quarto. Assim, ela percebe que ela pode verdadeiramente estar em perigo e o medo acaba tomando totalmente conta dela.

 O grupo Cham cantando para os seus milhares de fãs (e para alguns maníacos também).

Já no começo do filme conhecemos o fã maluco de Mima: um homem mal encarado, silente e preciso, que conseguiu o cargo de segurança nos shows da banda Cham e que, assim, pode ficar mais perto de seu ídolo, mesmo sem jamais ter lhe falado - o que, mais tarde, descobriremos ser uma verdade parcial, uma vez que descobrimos que o homem é louco o suficiente para comandar “O Quarto de Mima” (aquele site que comentei acima) além de acreditar que a garota - a Mima verdadeira, a estrela da música, não a atriz traidora - lhe manda e-mails que lhe dizem para agir contra a farsante que está na televisão. Vemos nele uma espécie de Annie Wilkes, de “Louca Obsessão” (1990), que faz de tudo para invadir a vida de Paul Sheldon, seu escritor preferido, chegando a ponto de atentar contra sua vida quando descobre que ele assassinou a sua personagem favorita no seu romance recém-publicado. A morte de Misery no romance, para Annie, representa a saída de Mima da banda, para o fã maluco daqui. Ainda há o fato de que os dois vivem uma espécie de bovarismo: Annie e o fã, tão aficionados que são, respectivamente, por Misery e por Mima, acabam vivendo a vida de seus ídolos, acreditando a partir de um momento que eles mesmos são os seus ídolos. Penso que o romance de Yoshikazu Takeuchi, que deu origem a Pâfekuto burû, pode ter se inspirado em parte pelo romance Misery, de Stephen King.

Mima também se vê ameaçada, o que gera nela um conflito psicológico muito grande, causando-lhe uma espécie de fragmentação e colocando-a diante de imagens alucinatórias. Ela começa, dado os constantes choques, a se enxergar como ela-mesma, a atriz e mocinha da história, e ela-outra, que ainda pertence à banda Cham e que é vilã. Não há mais paz em sua vida e é difícil para ela distinguir ficção de realidade, havendo momentos em que as duas confluem e ela não sabe mais se a vida que vive é a sua (ela-mesma), a de cantora (ela-outra) ou, ainda, a da personagem que ela interpreta no seriado, que foi estuprada e que sofre de transtorno dissociativo. É por esse aspecto que o filme nos remete ao posterior “Cisne Negro” (2010), que nos fala sobre uma bailarina tão empenhada em ser a melhor para conseguir o papel principal no balé O Lago dos Cisnes, que acaba duplicada na figura dela mesma - Odile, o cisne branco - e a outra - Odete, o cisne negro.

 Mima atuando numa das cenas mais difíceis de sua carreira: um estupro.

Talvez o grande problema do filme seja a repetição de muitas cenas, que parecem fazer com que a história não se desenvolva muito e que seu alicerce seja a repetição, o que não é verdade, mas que, inegavelmente, causa essa impressão no espectador, principalmente na realização do seu segundo terço de filme. E o final, bastante interessante, é seguido por uma cena de otimismo que não condiz com a trama e que, no fim, parece ter sido posta ali somente para mascarar o fato de que, já naquele estágio de medo, Mima não poderia simplesmente se reabilitar e ficar bem. Um erro que incomoda, não nego, mas que não destrói tudo o que havia sido mostrado anteriormente, até porque há uma descoberta interessante: a de que o suposto vilão não é verdadeiramente o vilão.

Honestamente, acredito que esse filme seja válido para se assistir, ainda que eu prefira outros títulos japoneses em animação, como o citado no começo desse texto. Mas reforço que poder assistir a esse filme e ainda ser remetido a dois filmes interessantes do cinema é mesmo muito válido, além de podermos conhecer um pouco mais do que o Japão tem a oferecer, além dos filmes de terror que já estão banalizados, seja por eles próprios ou pelas notórias refilmagens estadunidenses.

14 de jan. de 2012

Convite para um Homicídio

A Muder is Announced. RU / Irlanda, 1985, 153 minutos, mistério. Diretor: David Giles.

Um filme com um grande acerto e um grande erro, mas, apesar desse erro grotesco, uma obra que vale a pena ser conferida.

Honestamente não conheço muitos filmes baseados em livros de Agatha Christie. Acredito que o único anterior a esse a que eu já assisti foi “Assassinato no Expresso do Oriente” (1975), que rendeu a Ingrid Bergman o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante e Albert Finney uma indicação como Melhor Ator. “Convite para um Homicídio” se trata, na verdade, de uma minissérie feita para a televisão britânica e exibida em três episódios de cerca de cinqüenta minutos cada.

Devo começar dizendo que duas coisas me chamaram muito a atenção nessa produção: a excelente adaptação, que conta com atuações estarrecedoras e que dão total credibilidade àquilo que vemos, e a outra - esta negativa - se refere à falta de ritmo e de esclarecimento nos momentos finais, que deveriam ser o ápice dessa trama de assassinato. Como o próprio título sugere, é feito um convite para um homicídio que haverá de acontecer em Little Paddocks às dezenove horas - um anúncio no jornal matutino diz que todos os amigos estão convidados, o que gera curiosidade nos vizinhos e faz com que todos vão ao local na hora combinada, pensando tratar-se de uma brincadeira - os donos da casa, inclusive, pensavam tratar-se de uma brincadeira e, curiosos e ansiosos, resolveram levar adiante aquela situação.

 Murgatroyd e Hinch, duas personagens que serão fundamentais para a resolução dessa trama.

Para a surpresa de todos - e também do espectador desavisado (leia-se: aqueles que não conhecem a obra literária) -, acontece mesmo um homicídio: depois que todos se reúnem na casa de Letitia Blacklocks, todos à espera do começo da brincadeira, as luzes se apagam e um homem mascarado invade a sala, ilumina as pessoas com uma lanterna extremamente forte e dispara três tiros, um dos quais fera a dona da casa e outro que acertou a ele mesmo, aparentemente tratando-se de um suicídio todo teatral. A brincadeira gera muita confusão: uns crêem que o homem apenas estava ali para fazer seu último espetáculo antes de se matar; outros acreditam que ele estava ali para matar Letitia (doravante Letty); e ainda há os que acham que ele não se suicidou, sendo aquilo uma armação para um assassinato que acabou dando errado e, então, ele foi morto com queima de arquivo.

O filme é dividido em três, sendo que o primeiro deles mostra o acontecimento em Little Paddocks e a investigação policial; o segundo mostra a entrada de Jane Marple, uma senhora idosa, mas extremamente perspicaz, que ajuda o investigador a colher mais informações; e, por fim, no terceiro momento conhecemos as pistas finais que levarão à conclusão - esta mal executada - da trama. É necessário dizer que as duas primeiras partes são muito bem desenvolvidas e o espectador as acompanha com extremo interesse e curiosidade aguçada. Os personagens que conhecemos são bastantes díspares: há Bunny, amiga de Letty, que reside com a amiga e que é extremamente faladora, com características extremamente sinceras; há os Swettenham: enquanto a mãe é inventiva e incoerente, dada aos exageros, o filho é reservado e partidário do comunismo, o que atrai a atenção para si; há o Coronel e sua esposa, sendo curiosamente dele a arma usada pelo invasor de Little Paddocks; há ainda Julia e Patrick Simmons, primos distantes de Letty, a quem ela veio a conhecer apenas recentemente; há ainda a mulher do pároco, mulher bastante sincera e sobrinha de Jane Marple; por fim, a senhorita Haymes, a jardineira da casa, e Hannah, a cozinheira refugiada e temerosa, que acha que todos a odeiam ou querem matá-la.

 Jane Marple: uma velhinha bem mais interessante do que a personagem pedante descrita nos livros.

Toda a investigação inicial chega a conclusão de que o homem invasor, Rudi Scherz, pretendia roubar, mas acabou cometendo suicídio quando viu a situação na qual se pusera. Tudo isso até o segundo ato, quando Jane Marple traz uma sugestão que a ela parece óbvia: o homem jamais estivera armado, fazendo com que ele não pudesse atirar em ninguém nem ao menos em si mesmo - alguém o matou. Quando questionada a respeito, sua explanação é bastante simples: com as luzes apagadas, as pessoas não podiam enxergar nada a não ser a fonte de luz, que, de tão forte, abobalhou-as por instantes - apesar de o homem ter gritado “Mãos para o alto, senão eu atiro” e de as pessoas terem ouvido tiros, esses são os dois únicos fatos, já que ninguém poderia ver-lhe as mãos para constatar que ele trazia consigo um revólver. Assim as investigações tomam novo rumo e o espectador adentra mais ainda aquele universo de estranha calmaria e iminente perigo, como concluímos conforme a história de desenvolve.

Creio que o melhor de tudo seja o elenco. Quando eu li o romance há algum tempo - na verdade, muitos anos atrás -, eu fiquei impressionado com Letty Blacklock e constantemente me perguntava como seria essa narrativa transposta para o cinema - e devo dizer que os personagens aqui vistos são exatamente como eu imaginei. O diretor tomou o cuidado de não permitir que qualquer ator fugisse das características dos personagens do livro, tornando todos bastante fidedignos. Penso, aliás, que aqui estejam os personagens mais fieis a um livro que eu já vi; jamais os imaginei senão do jeito que aqui são retratados. Destaque para Murgatroyd e para a própria Letty Blacklock, interpretadas por Joan Sims e Ursula Howells. Quanto às atuações, talvez o elenco jovem seja o mais problemático, já que alguns deles - a intérprete de Julia Simmons, por exemplo - parecem trazer consigo muitos cacoetes e acomodações nos personagens, sem nos mostrar nada novo. Mas, ainda assim, nenhum grande problema.

 Letty Blacklock: excelente adaptação do livro e interpretação magnífica da atriz.

Se a revelação, no livro, é simplesmente o momento mais interessante e, talvez, angustiante de toda a narrativa, no filme simplesmente vemos a oportunidade de um grande desenlace se perdendo devido à falta de ritmo e à falta de explicações convincentes, que simplesmente parecem ignorar ou dar pouca importância a elementos que são essenciais ao desenvolvimento do plano do verdadeiro responsável pelo “convite para o homicídio”. Quando digo isso, falo a verdade: somente sei como tudo aconteceu, porque me lembro bem do desfecho do romance literário, de outro modo, ficaria com uma expressão de desagrado após ver esse filme. Penso no quanto é válido assistir a duas horas e meia de filme para então concluir que o final deixou a desejar, não por que foi curto demais ou por que a direção é sofrível - porque isso não acontece aqui -, mas porque não há informações suficientes que permitam ao espectador montar em sua cabeça um “mapa” de como tudo aconteceu.

Apesar de bom em sua maior parta, o final deixa a desejar e, infelizmente, sendo o desfecho, no caso desse filme, a parte mais importante da trama, ficamos com a sensação de que não valeu a pena. Mas eu acho que vale que confiramos o filme, porque é uma das poucas adaptação que realmente encantam o espectador - mas, obviamente, eu recomendo que vocês leiam o livro antes ou depois, a fim de ver a diferença que faz a ausência no filme de Jane Marple perguntando à Hinch qual fora a entonação usada por Murgatroyd quando essa, antes de ser mais uma das vítimas, concluiu uma coisa extremamente importante: ela não estava lá. Na verdade, na entonação correta: ela não estava .

12 de jan. de 2012

Vadias do Sexo Sangrento

Brasil, 2008, 30 minutos, comédia / terror. Diretor: Petter Baiestorf.
Esse curta-metragem traz momentos muito toscos e divertidos e outros muito incômodos, que não permitem ao espectador saber se se trata de uma brincadeira ou de uma tentativa falha de fazer algo sério.

Confesso que eu adoro filmes ruins e filmes “ruins”. Os primeiros são aquelas porcarias que tentaram dar certo, mas acabaram inevitavelmente no lado cômico devido à série de elementos não-funcionais na sua trama - nesse grupo, estão filmes como “Hellraiser - Renascido do Inferno” (1987), cuja história e efeitos são toscos, mas que diverte. No segundo grupo estão filmes como “A Morte do Demônio” (1981) e “A Noite dos Demônios” (1988), cujos aspectos técnicos e artísticos são tão ruins que só podem ser brincadeira e acabam divertindo o espectador por serem engraçados (embora tenha gente aí jurando que são filmes de terror, ui!).

“Vadias do Sexo Sangrento” (2008), uma produção sul-rio-grandense, tem tudo para estar no segundo grupo, já que a história por si só parece não querer nos convencer tampouco as atuações têm essa pretensão, tão ridículas - em ambos os sentidos - que são. Logo no começo do filme conhecemos um maníaco que persegue as mulheres, porque, quando criança, durante uma excursão, foi estuprado por 48 padres, o que gerou nele algum conflito psicológico. Paralelamente, conhecemos um rapaz que está disposto a tudo para voltar com a namorada, que já não lhe quer mais e até já o trocou por outra mulher, pois quer experimentar coisas novas. Num dado momento, a vingança do ex-namorado resulta num encontro de todos com o maníaco - e também com um senhor que pesca tranqüilamente na praia e com o narrador da história.

 Os bastidores: o diretor e dois atores se preparando para a cena final.

Estamos falando de uma produção a qual podemos chamar, no mínimo, de ousada. A obra conta com nudez frontal masculina e feminina num país que já deu muita vazão à sexualidade e ao sexo, inclusive explícito, mas que agora se resguarda numa falsa moralidade que teme mostrar nudez antes das 10 horas da noite; a obra também conta com a criatividade do elenco e da equipe para apresentar uma cena de remoção do intestino - adendo importante: pelo ânus - além de um momento no qual, por vingança, uma personagem invade a barriga de outro, matando-o por dentro; ainda temos uma cena de farta ejaculação, bastante gore, uma cena de estupro e diálogos extremamente ruins que não querem dizer absolutamente nada. Como vemos, o filme tem tudo para dar certo - e não temo ao afirmar isso.

E ele dá certo em algumas cenas. Ele diverte e cativa o espectador com o monte de bobagem a que estamos assistindo, dou destaque a especial à cena do homem que pesca que, ao ver o outro com o intestino pra fora e totalmente nu, decide ir ver o que estava havendo (o ex-namorado estava estuprando a sua ex-namorada na frente da atual namorada dela) e acaba se masturbando em vez de ajudar a moça amarrada. Mas existem outros momentos que colocam em dúvida a seriedade - ou a não-seriedade - do filme, como os vários momentos em que o jovem tenta reconquistar a ex: as cenas parecem ter a função de criar uma veia dramática na história que simplesmente não cabe ali, mesmo que esse tom sério fique meio balançado pela interpretação do ator.

 Definitivamente, não é um filme para espectadores pudicos.

Eu diria que esse é o tipo de filme que nos diverte durante a sua exibição, mas não é certo nem provável que vá divertir, justamente porque lhe falta o elemento x que permitiu ao filme de Sam Raimi ser a grande obra-prima que é. Após o término da obra, fica o elogio à ousadia, mas logo vem o esquecimento, que é uma amostra de falta algum detalhe na história, algo que a fixe em nossas mentes. Mas decerto vale a pena conhecer mais do cinema independente de Petter Baiestorf, que atuou no interessantíssimo “A Noite do Chupacabras” (2011), de Rodrigo Aragão - este, simpaticíssimo - e que produziu outro filme relativamente famoso no circuito independente do cinema nacional, que é “Arrombada: Vou Mijar na Porra do seu Túmulo” (2007) - aliás, Baiestorf faz em “Vadias do Sexo Sangrento” uma ótima referência ao seu filme anterior, numa cena que envolve urina, sangue e raiva por parte de uma vítima do maníaco.

10 de jan. de 2012

Corra, Lola, Corra

Lola Rennt. Alemanha, 1998, 80 minutos, ação. Diretor: Tom Tykwer.
Um filme bastante dinâmico e divertido, decerto uma das melhores produções alemães. Nos responde à seguinte pergunta: e se aquilo não tivesse acontecido daquele jeito, como seria? Vale conferir, com certeza.

Havia muito tempo que eu queria ver esse filme e esse é mais um dos vários que o Pedro me passou e, por isso, eu o agradeço de novo (e ainda há mais para agradecer). Sempre ouvi pessoas fazendo bons comentários e sempre quis vê-lo. Quando finalmente assisti ao filme, pude concluir que é uma das obras mais interessantes que conferi recentemente.

O filme nos conta a mesma história três vezes, modificando alguns eventos-chave e reconstruindo toda a situação a partir da mudança desses acontecimentos. Lola recebe uma ligação do seu namorado desesperado, que precisa arrumar 100 mil dólares em vinte minutos. Então, temendo que ele tome alguma atitude impulsiva e muito errônea, ela decide ajudá-lo, indo ao seu encontro e tentando encontrar um meio de conseguir o dinheiro.

O desenho animado dá um ar especial a essa obra, tornando-a bem mais divertida.

O grande mérito do filme é exatamente recontar a mesma história mais de uma vez, fazendo com o que espectador acompanhe a trajetória de Lola em três situações diferentes. Vale ressaltar que o que há de mais interessante é o modo como o filme incentiva a nossa curiosidade e ao mesmo tempo sacia uma dúvida: e se pudéssemos reviver alguma coisa de um jeito diferente? Lola nos mostra o que aconteceria. Por exemplo, num primeiro momento, ela desce as escadas desesperadamente, encontra um cachorro feroz no caminho, o que lhe faz hesitar e prossegue o seu caminho, colidindo com pessoas, quase sendo atropelada, interagindo com pessoas na rua. No segundo momento, desde as escadas correndo e cai, fazendo com que se atrase um pouco por causa da queda em si e da perna machucada pelo tombo, fazendo-a correr mancandoo que a atrasa em relação aos mesmos eventos mostrados na primeira sequência. No último momento, ela desce extremamente rápido, adiantando-se em relação às duas vezes anteriores. Então, o filme nos mostra como as coisas poderiam acontecer – e as quais seriam as conseqüências delas – se nós pudéssemos viver um acontecimento e depois revivê-lo, para descobrir qual seria o melhor modo de ele ser concebido.

 Características histriônicas ajudam o filme a conquistar a nossa simpatia.

O modo como o filme brinca com o tempo é realmente muito válido. Cada seqüência tem aproximadamente 20 minutos e, ainda que se repita três vezes, não temos a impressão de que esteja tudo repetido. A história se reinventa dentro de si mesma e os time loops utilizados soam positivamente. Entre cada cena, há um momento introspectivo, decerto não pertencente ao plano real, no qual Lola e Manni, seu namorado, dialogam sobre um assunto delicado – como o relacionamento deles e sobre possíveis dissoluções. Outro fator positivo, além das viagens temporais, é também a mistura de realidade com animação, sendo esse um plano que surge no começo de cada nova seqüência e também nos créditos iniciais, que são bem longos e indicam muito do que haverá no filme. A somar, há o conjunto direção-atuação, que resulta num aspecto muito positivo do filme. Tanto Franka Potente quanto Moritz Bleibtreu, respectivos intérpretes de Lola e Manni, compõem personagens críveis e simpáticos – mesmo ele sendo impulsivo e um pouco irracional, ele conquista a nossa simpatia. O mesmo pode ser dito sobre Lola, que nos cativa com o seu desespero e seu jeito desengonçado de correr – e também de gritar! Tom Tykwer, responsável pelo monótono “Perfume – A História de um Assassino” (2006), aqui nos traz uma obra elogiável e muito interessante, com uma dinâmica excelente e com uma série de características que somente fazer aumentar o apreço do espectador pela obra. Assim, não há como negar que o conjunto seja extremamente válido e que exatamente por isso essa seja uma produção extremamente elogiável.

Sei que valeu a pena ter assistido a esse filme. “Corra, Lola, Corra” é uma produção alemã que merece atenção e que parece bastante recente, embora já tenha completado treze anos. Além de proporcionar um entretenimento muito válido, ele ainda possui aspectos com bastante qualidade e um roteiro que nos faz pensar. Após tê-lo visto, me lembrei de um acontecimento importante e pensei comigo mesmo: e se, nessa situação, tal como aconteceu com Lola, eu tivesse torcido o tornozelo e me atrasado? Aposto que vocês pensarão algo semelhante quando conferirem o filme.

8 de jan. de 2012

A Confissão de Lúcio


Portugal, 1913, 126 páginas (Editora Komedi, 2009). Autor: Mário de Sá-Carneiro.
Uma narrativa pungente que oferece ao leitor um romance policial fabuloso e ainda nos apresenta a um dos mais notáveis triângulos amorosos da literatura modernista.

É perfeitamente possível que se leia essa obra sem o conhecimento do momento histórico-literário do qual ela faz parte. Pode-se lê-la bem, compreendê-la bem, isso é inegável; mas saber precisá-la temporalmente, relacionando-a ao pensamento estético que dominava Portugal logo no começo do século XX é tornar essa narrativa ainda mais fabulosa do que ela já é. Mário de Sá-Carneiro é um autor extremamente importante para a implantação do Modernismo em Portugal, já que ele, em parceira com Fernando Pessoa e Almada-Negreiros, foi responsável pelo lançamento da revista Orpheu em 1915, ano que se tornou marco para o movimento modernista luso.

“A Confissão de Lúcio”, portanto, é pré-modernista se considerarmos o ano da implantação de tal escola em Portugal, mas já se mostra modernista se considerarmos as suas características estéticas de enredo e de discurso. Como se supõe, Lúcio é um personagem importante para a história – é, na verdade, protagonista e narrador dela. Lúcio, logo nas primeiras páginas, afirma ser essa narrativa a sua forma de apresentar sua inocência de um crime pelo qual foi condenado há dez anos de prisão. Mas toda a sua história é, como ele mesmo diz, “a mais perturbadora, a mais incoerente, a menos lúcida” (SÁ-CARNEIRO, 2009, p. 20), pois ela gira em torno de três personagens – ele mesmo, Ricardo Loureiro e Marta –, uma obsessão e muitos momentos de proximidade traiçoeiras.

Para compreender melhor a história, precisamos compreender o homem que Sá-Carneiro busca retratar. Como o ano de sua escrita é 1913, precisamos considerar a situação pela qual passava a população no momento. Portugal havia deixado a Monarquia em 1910 para se tornar República, assim, em apenas três anos, as questões políticas eram extremamente vívidas ainda. Àquele ano, o mundo estava meio abalado com a série de problemas que vinham acontecendo na Europa, África e América, e que, no ano seguinte, explodiu como a Primeira Guerra Mundial. Quanto à arte, expunha-se muito as formalidades parnasianas em contraste com o aparente desapego terreno dos simbolistas; enquanto os primeiros ditavam um rigor sistêmico para a poesia, os segundos retratavam figuras que escapavam aos problemas da vida, recolhendo-se ao plano idealizado. Assim, os novos intelectuais, que enxergavam essas escolas como ultrapassadas e desajustadas temporalmente, propunham uma nova forma de arte, que era justamente aquela na qual se podia falar sobre o homem, sobre as relações humanas, sobre as características próprias de cada região – permitindo, assim, também o uso de linguagem popular, por exemplo. E é nesse grupo que se encontra Mário de Sá-Carneiro.

Como dito acima, havia questões a serem tratadas: a política, a arte, o amor, o amor à política e à arte, a política na arte – inevitavelmente, ocorre a fragmentação do ser, que busca dentro de si todos os suportes para suprir os dilemas com os quais deve lidar. O homem moderno então é obrigado a compreender e a agir, mesmo que isso implique numa dissociação de si. E aí surge o “duplo”, que é um tema bastante trabalhado na literatura modernista. Verifica-se que a relação estabelecida entre Lúcio e Ricardo – o homem por cuja morte Lúcio foi condenado – é associada às suas semelhanças e diferenças como formas complementares. Assim, os medos de um são as coragens do outro; a introversão de um se espelha na extroversão do outro: completam-se, portanto; tornam-se um. “Compreendiam-se perfeitamente as nossas almas – tanto quanto duas almas distintas se podem compreender. E, todavia, éramos duas criaturas muito diversas” (ibidem, p. 50). E isso é importante para que compreendamos a relação desses dois personagens, que, como se evidencia em muitos momentos, não são apenas os melhores amigos, mas, talvez, seja a pessoa melhor amiga de si mesma.

Ainda é necessário que encontremos mais pontos nessa história que levará a outra interpretação. Lúcio e Ricardo são duplos: vemo-los muito evidentemente como duas pessoas, mas, tão próximo que são e tão complementares suas atitudes, é difícil dizê-los distintos, como Lúcio mesmo faz. Compreendem-se perfeitamente, porém – e que duas pessoas são totalmente capazes de se entender? Uma série de indícios nos leva a diversas suposições, inclusive a de que Lúcio, envolvido consigo mesmo criou a figura de Ricardo e, estendendo-o à Marta, fragmentou uma criatura imaginada. Ricardo, a Lúcio num determinado momento, fala:

- Sabe, você, Lúcio, que tive hoje uma bizarra alucinação? Foi à tarde. Deviam ser quatro horas... Escrevera o meu último verso. Saí do escritório. Dirigi-me para o meu quarto... Por acaso olhei para o espelho do guarda-vestidos e não me vi refletido nele! Era verdade! Via tudo em redor de mim, via tudo quanto me cercava projetado no espelho. Só não via a minha imagem... Ah! Não calcula o meu espanto... a sensação misteriosa que me varou... (ibidem, p. 81).

Ricardo por vezes parece não se fixar como pessoa de verdade, apenas como uma figura imaginária para si próprio; quanto a Lúcio, parece–lhe fabular, uma criatura quase moralizante e, curiosamente, de comportamento inverso à moral do momento. Com o decorrer da trama, é-nos introduzida nova personagem: Marta, esposa de Ricardo. Ela, como se vê, parece ainda mais ilusória do que o esposo, chegando a ponto de ser uma criatura mítica. Nota-se que ela parece existir somente no universo dos personagens, cabendo a interessante curiosidade a seu respeito, numa observação feita por Lúcio:

“[...] uma noite achei-me perguntando a mim próprio: - Mas no fim das costas quem é esta mulher?... Pois eu ignorava tudo a seu respeito. Donde surgira? Quando a encontrara o poeta [Ricardo]? [...] Em face de mim nunca fizera a mínima alusão ao seu passado. Nunca falara de um parente, de uma sua amiga. E, por parte de Ricardo, o mesmo silêncio, o mesmo inexplicável silêncio...” (ibidem, p. 67).

Mais tarde, acentuando o clima de mistério acerca de Marta, Lúcio acrescenta, que, enquanto ouvia uma música belíssima, viu “a figura de Marta dissipar-se, esbater-se, som a som, até que desapareceu por completo” (ibidem, p. 70). E o mais interessante é perceber o modo como pouco a pouco os três personagens se envolvem num romance que delineia caminhos muito tortuosos - é difícil saber a quem Lúcio verdadeiramente ama: a Marta, com quem ele se relaciona, ou a Ricardo, cuja esposa serve de ponte entre os dois? E conforme a leitura vai caminhando, vamos percebendo que Mário de Sá-Carneiro não temeu abordar assuntos delicados, como a homossexualidade, sugerindo a todo os momentos que pode haver entre os personagens algo mais do que uma simplesmente amizade.

Talvez o mais marcante para mim seja justamente esse elemento na trama: a dubiedade do relacionamento entre Lúcio e Ricardo, até porque, como vi, a Marta é figura bastante ilusória, ora oriunda de Ricardo, ora de Lúcio - estes dois, aliás, para mim, são na verdade a mesma pessoa. Toda a trama é, a meu ver, uma grande metáfora sobre a homossexualidade e os desdobramentos que o homem do começo do século passado precisava passar para poder sobreviver consigo mesmo. Lúcio e Ricardo são representações do homem: o primeiro é o homem heterossexual e figura apreciada na sociedade enquanto o segundo faz parte do submundo. Vemos ao longo de toda a trama que Lúcio é o mais contido, mais reservado, sua sexualidade não é questionada por nós; já Ricardo representa o homem em conflito por não poder ser amigo de um homem senão o possuindo (nas suas próprias palavras). E os dois representam o que o homossexual deve ser àquela época: ainda que sua essência seja conflituosa (Ricardo), ele deve sempre estar acima de suspeitas (Lúcio). Aí surge Marta, como uma extensão de Ricardo, a fim de relacionar-se com Lúcio, mostrando que o elo que permite a dois homens estarem juntos é uma mulher: não fosse uma figura feminina a intermediar a relação, decerto já teria havido suspeitas sobre os dois - ou, a meu ver, sobre o um, qualquer que seja, Ricardo ou Lúcio.

Foi o meu grande livro de 2011 - li-o rapidamente, muito voraz, tomando inúmeras notas a respeito de momentos interessantes do livro. Eu realmente o recomendo a todos que querem aventurar-se numa narrativa policial interessante, cheia de mistérios e dotada de uma qualidade narrativa quase inominável. Não consigo nem sequer descrevê-lo bem e analisá-lo com eficiência cansaria a paciência de vocês bem como me faria utilizar 300 linhas escrevendo. Encerro dizendo que é decerto um dos melhores livros que vocês lerão - ou, pelo menos, eu pelo menos acredito que será.

Referência bibliográfica:
SÁ-CARNEIRO, Mário de. A confissão de Lúcio. Campinas: Komedi, 2009.