4 de fev. de 2012

Maurice

Maurice. Reino Unido, 1987, 153 minutos, drama. Diretor: James Ivory.
De narrativa lenta e de tema incômodo, o filme discorre a respeito da vida de Maurice de modo interessante, deixando um sabor agridoce após o seu fim.

A obra cinematográfica provém do romance inglês escrito por E.M. Foster e publicado em 1971, após a morte do escritor, que também escreveu outros títulos que viriam a ser adaptados, como “Uma Janela para o Amor” (1908), “Retorno a Howards End” (1910) e “Passagem para Índia” (1924), transformados em filmes respectivamente em 1985, 1992 e 1984. Sua obra “Maurice” retrata a história do jovem que dá título ao livro, um rapaz da alta sociedade que estudou em Cambridge, onde conheceu Clive, por quem desenvolveria uma paixão que seria, feliz ou infelizmente correspondida.

A doçura do filme se limita a uns poucos momentos, que são justamente aqueles nos quais Maurice e Clive - inspirados em pessoas reais - se dedicam ao amor sem culpa, bastante infantil, cheio de idílio e, sobretudo, puro, porque Clive acredita que enquanto eles souberem que se amam e estiverem juntos sem “blasfemar” desse sentimento, mantendo-o platônico e, portanto, constante. Habituados a uma sociedade na qual a homossexualidade é crime, os personagens mantêm os seus sentimentos às escuras, revelando-o somente para si mesmos e, ainda num primeiro momento, meio receoso por parte de Maurice, que parece atormentado a princípio pelo que sente por Clive, esse tão direto em suas palavras.

O romance dos personagens se desenvolve lentamente, sempre tão presente um na vida do outro que parece não importa o platonismo daquela relação. Os dois atravessam a primeira década, passando por 1909, quando se conhecem; chegando a 1910, quando já são amigos bem próximos; e, por fim, adentrando a nova década, tão moralista e perigosa quantos os anos anteriores - 1911 marca o ano em que a caça aos homossexuais se torna mais noticiada e 1912 faz com que um dos amigos de Clive e Maurice seja preso por pederastia ou, como dito à época, comportamento imoral. Isso desperta em Clive a noção de que eles precisam se privar da relação que têm e que precisa se afastar, evitar aproximações que possam gerar dúvida sobre eles. E é a partir daí que começa a sensação de amargor que predominará o filme até o seu final, apesar de quase happy ending.


James Wilby e Hugh Grant  protagonizam um amor que começa na adolescência e perdura a vida toda.
Grande parte do sucesso do primeiro ato do filme - aquele que vai do começo ao fim da relação entre Clive e Maurice - se dá pela interpretação de Hugh Grant, bastante maduro em sua atuação, nos presenteando com uma das suas atuações mais simpáticas e carismáticas. Sua atuação com Clive nos faz rapidamente entender o porquê de Maurice, interpretado por James Wilby, ter tão facilmente se apaixonado por aquele rapaz de idéias libertárias e de sorriso tão espontaneamente lindo. A história nesses primeiros anos se sustenta justamente pela delicadeza de que tudo é mostrado: os abraços dos personagens, os seus passeios pelos campos, os segredos que eles trocam bem como os sorrisos que são códigos muito significativos compreendidos somente pelos dois. James Ivory, que também foi o responsável por outras duas adaptações de livros de Foster, retratou eficientemente bem a relação de carinho existente entre os dois, finalizando o seu primeiro ato fílmico muito bem, deixando-nos com a introdução do pesar que seria mostrado a partir de então.

A verdadeira essência do filme é o incômodo que perduraria na vida de Maurice, que viu o amigo se casando com Anne e que não podia mais expor seus sentimentos senão a um psicólogo, que o aconselha a não morar mais na Inglaterra bruta que considera a relação entre dois homens como um crime. Maurice se vê dividido entre as constantes idas ao campo, onde fica na casa de Clive, presença que tanto o incomoda, já que há entre os dois algo pendente - tanto o personagem quanto o espectador sabem que Clive tem por ele ainda muito mais do que apenas simpatia e que quando os dois conversam há um indizível amor latejando tanto num quanto noutro. E a somar, surge um terceiro personagem, um rapaz que trabalha para Clive, alguém que reacende em Maurice a vontade de dividir as coisas com alguém especial. Inegável que existe entre Maurice e o rapazinho, bem mais jovem e cheio de expectativas, apesar de classe social, muitos desejos em comum, a principiar pela vontade de quererem um ao outro.

Maurice finalmente encontra quem o quer sem medo de assumir o amor que sentem.
O novo romance da obra não torna o filme menos incômodo. O fato de Maurice e o rapaz não poderem assumir publicamente seu amor perdura o filme todo e continua ferindo o espectador, uma vez que esse conhece as conseqüências que surgirão caso aquele amor seja descoberto, mas, ainda assim, torce para que eles possam expor abertamente o que sentem - é, no fim, o que melhor poderia acontecer ao personagem protagonista dessa trama, que, como ele mesmo diz num determinado momento, sempre se sentiu assim, sempre foi um “indizível” (homossexual), e toda vida precisou ficar encoberto. Ivory também conduz bem essa parte da trama, fazendo com que, assim, ambos os aspectos fundamentais dessa narrativa confluam numa mesma linha, unindo assim o charme indiscutível do primeiro momento e a dor do segundo momento, fechando o segundo ato utilizando-se da própria história e também do carisma de Rupert Graves, que defende bem o camponês sonhador Scudder, sendo ele quase o contraponto da objetividade quase rude de Maurice.

O diretor nos traz um final que é, no mínimo, perturbador. Não pela sua essência, que é, aliás, muito bonita e faz com que sintamos que houve finalmente justiça, mas justamente pelo que não vem depois, pelo filme acabando com a suposição de que eles darão certo - a pergunta que cabe a nós é: e a sociedade destrutiva daquele começo de século conseguiu por fim admiti-los? Considerando que a nossa sociedade, cem anos depois, não é capaz de aceitar, creio que os dois personagens tiveram uma vida difícil, bastante reclusa, e abrindo mãos de inúmeras coisas - seus trabalhos, suas famílias, talvez até grande amigos. E também nos perguntamos a respeito de Clive - como será que ele enxergou a “vitória” do amigo?

A única coisa no filme que não me convenceu foi James Wilby, que me pareceu meio inadequado desde o começo. Algo nele me incomoda, talvez a sua aparência sempre plácida, mesmo quando as situações requerem expressões mais dramáticas - falta senti-lo vivenciando as experiências do seu personagem, não simplesmente acompanhando-as como fazemos nós, os espectadores. Rupert Graves e Hugh Grant, no entanto, como já disse, são bastante envolventes, suas atuações nos convencem e, a somar, James Ivory parece tirar dos atores mais elegância e emoção. O pequeno incômodo com o protagonista, porém, não me faz deixar de recomendar essa obra, que é bastante interessante, apesar de bastante longa - talvez, desnecessariamente longa. As duas horas e meia de filme não incomodam, mas decerto poderiam ser reduzida a apenas duas horas e, ainda assim, a história seria eficientemente exibida. Um filme que vale a pena, com certeza.

4 opiniões:

Alyson Santos disse...

E mais uma vez o blog serve para me mostrar coisas novas. Não conheço "Maurice", mas o plot é interessante. Apesar que as tuas ressalvas quanto ao protagonista e a duração do filme, gerem em mim um certo desânimo, mas esta situação intrigante do amor criminoso é o suficiente.

Li também seu texto sobre "Do começo ao Fim", ao qual já assisti e acho horrendo, quase não o considero um filme, pois realmente há problemas 'do começo ao fim'. E acho que o diretor não teve é coragem ou pensou em algo sutil para insinuar que desde pequenos apresentam algo que vão além do afeto. Se pegarmos o sueco "Deixe ela entrar" (longe de compará-los) veremos um exemplo de como trabalhar a homossexualidade com figuras infantis.

Grande abraço!

Marcelo A. disse...

Um dos primeiros filmes a abordar a temática gay que assisti. Gosto muito, muito mesmo de Maurice, mas concordo com o que falou a respeito do Wilby. Sempre o achei completamente perdido naquele papel. Mas isso não estraga o quão prazeroso é assistir a esse filme, principalmente pelo desfecho - já que nesse tipo de história, as coisas nem sempre terminam deste jeito.

Rodrigo Mendes disse...

Gosto das obras adaptadas que o Ivory já fez. Seu cinema é mais lento mesmo. Adoro, por exemplo, "Vestígios do Dia" e sem dúvida que "Howards End" é um excelente filme.

Separei pra ver Uma Janela Para o Amor e Maurice já faz um tempo.

Você elogia bastante Hugh Grant, bom saber. Acho que ele tinha uma carreira promissora e filmes nesta fase da carreira dele (Quanto Casamentos e Um Funeral) demonstram isso. Não entendo como o cara conseguiu se afundar em Hollywood...vá lá alguns filmes bacaninhas como "Notting Hill", "Um Grande Garoto" e "Nove Meses". É divertidinho a série "Briget Jones" (vem mais um por aí...), mas nada perto de um filme como este, que segundo você, é uma fita muito bem recomendada.

Ivory não chega a ser um Bergman neste tipo de cinema, mas é notável e tão envolvente quanto.

Abs.

Anônimo disse...

Eu ainda não vi este filme. Mas considerei os seus comentários muito interessantes... Apesar que fiquei bastante desapontado com o comentário a respeito do protagonista! Pelo visto, não conseguiu representar o verdadeiro Maurice...Terminei de ler o livro de E. M. Forster há duas semanas... É uma bela história, pois trabalha o tema da homossexualidade de uma forma leve e serena. O mais incrível de tudo é pensar que o livro foi escrito em 1913/14!!! Ainda hoje, muitos autores tem problema em escrever sobre isto, quase sempre privilegiando um modelo de homossexualismo que beira a vulgaridade... Maurice não é assim. Uma bela leitura, que fiz em apenas uma noite...