8 de jan. de 2012

A Confissão de Lúcio


Portugal, 1913, 126 páginas (Editora Komedi, 2009). Autor: Mário de Sá-Carneiro.
Uma narrativa pungente que oferece ao leitor um romance policial fabuloso e ainda nos apresenta a um dos mais notáveis triângulos amorosos da literatura modernista.

É perfeitamente possível que se leia essa obra sem o conhecimento do momento histórico-literário do qual ela faz parte. Pode-se lê-la bem, compreendê-la bem, isso é inegável; mas saber precisá-la temporalmente, relacionando-a ao pensamento estético que dominava Portugal logo no começo do século XX é tornar essa narrativa ainda mais fabulosa do que ela já é. Mário de Sá-Carneiro é um autor extremamente importante para a implantação do Modernismo em Portugal, já que ele, em parceira com Fernando Pessoa e Almada-Negreiros, foi responsável pelo lançamento da revista Orpheu em 1915, ano que se tornou marco para o movimento modernista luso.

“A Confissão de Lúcio”, portanto, é pré-modernista se considerarmos o ano da implantação de tal escola em Portugal, mas já se mostra modernista se considerarmos as suas características estéticas de enredo e de discurso. Como se supõe, Lúcio é um personagem importante para a história – é, na verdade, protagonista e narrador dela. Lúcio, logo nas primeiras páginas, afirma ser essa narrativa a sua forma de apresentar sua inocência de um crime pelo qual foi condenado há dez anos de prisão. Mas toda a sua história é, como ele mesmo diz, “a mais perturbadora, a mais incoerente, a menos lúcida” (SÁ-CARNEIRO, 2009, p. 20), pois ela gira em torno de três personagens – ele mesmo, Ricardo Loureiro e Marta –, uma obsessão e muitos momentos de proximidade traiçoeiras.

Para compreender melhor a história, precisamos compreender o homem que Sá-Carneiro busca retratar. Como o ano de sua escrita é 1913, precisamos considerar a situação pela qual passava a população no momento. Portugal havia deixado a Monarquia em 1910 para se tornar República, assim, em apenas três anos, as questões políticas eram extremamente vívidas ainda. Àquele ano, o mundo estava meio abalado com a série de problemas que vinham acontecendo na Europa, África e América, e que, no ano seguinte, explodiu como a Primeira Guerra Mundial. Quanto à arte, expunha-se muito as formalidades parnasianas em contraste com o aparente desapego terreno dos simbolistas; enquanto os primeiros ditavam um rigor sistêmico para a poesia, os segundos retratavam figuras que escapavam aos problemas da vida, recolhendo-se ao plano idealizado. Assim, os novos intelectuais, que enxergavam essas escolas como ultrapassadas e desajustadas temporalmente, propunham uma nova forma de arte, que era justamente aquela na qual se podia falar sobre o homem, sobre as relações humanas, sobre as características próprias de cada região – permitindo, assim, também o uso de linguagem popular, por exemplo. E é nesse grupo que se encontra Mário de Sá-Carneiro.

Como dito acima, havia questões a serem tratadas: a política, a arte, o amor, o amor à política e à arte, a política na arte – inevitavelmente, ocorre a fragmentação do ser, que busca dentro de si todos os suportes para suprir os dilemas com os quais deve lidar. O homem moderno então é obrigado a compreender e a agir, mesmo que isso implique numa dissociação de si. E aí surge o “duplo”, que é um tema bastante trabalhado na literatura modernista. Verifica-se que a relação estabelecida entre Lúcio e Ricardo – o homem por cuja morte Lúcio foi condenado – é associada às suas semelhanças e diferenças como formas complementares. Assim, os medos de um são as coragens do outro; a introversão de um se espelha na extroversão do outro: completam-se, portanto; tornam-se um. “Compreendiam-se perfeitamente as nossas almas – tanto quanto duas almas distintas se podem compreender. E, todavia, éramos duas criaturas muito diversas” (ibidem, p. 50). E isso é importante para que compreendamos a relação desses dois personagens, que, como se evidencia em muitos momentos, não são apenas os melhores amigos, mas, talvez, seja a pessoa melhor amiga de si mesma.

Ainda é necessário que encontremos mais pontos nessa história que levará a outra interpretação. Lúcio e Ricardo são duplos: vemo-los muito evidentemente como duas pessoas, mas, tão próximo que são e tão complementares suas atitudes, é difícil dizê-los distintos, como Lúcio mesmo faz. Compreendem-se perfeitamente, porém – e que duas pessoas são totalmente capazes de se entender? Uma série de indícios nos leva a diversas suposições, inclusive a de que Lúcio, envolvido consigo mesmo criou a figura de Ricardo e, estendendo-o à Marta, fragmentou uma criatura imaginada. Ricardo, a Lúcio num determinado momento, fala:

- Sabe, você, Lúcio, que tive hoje uma bizarra alucinação? Foi à tarde. Deviam ser quatro horas... Escrevera o meu último verso. Saí do escritório. Dirigi-me para o meu quarto... Por acaso olhei para o espelho do guarda-vestidos e não me vi refletido nele! Era verdade! Via tudo em redor de mim, via tudo quanto me cercava projetado no espelho. Só não via a minha imagem... Ah! Não calcula o meu espanto... a sensação misteriosa que me varou... (ibidem, p. 81).

Ricardo por vezes parece não se fixar como pessoa de verdade, apenas como uma figura imaginária para si próprio; quanto a Lúcio, parece–lhe fabular, uma criatura quase moralizante e, curiosamente, de comportamento inverso à moral do momento. Com o decorrer da trama, é-nos introduzida nova personagem: Marta, esposa de Ricardo. Ela, como se vê, parece ainda mais ilusória do que o esposo, chegando a ponto de ser uma criatura mítica. Nota-se que ela parece existir somente no universo dos personagens, cabendo a interessante curiosidade a seu respeito, numa observação feita por Lúcio:

“[...] uma noite achei-me perguntando a mim próprio: - Mas no fim das costas quem é esta mulher?... Pois eu ignorava tudo a seu respeito. Donde surgira? Quando a encontrara o poeta [Ricardo]? [...] Em face de mim nunca fizera a mínima alusão ao seu passado. Nunca falara de um parente, de uma sua amiga. E, por parte de Ricardo, o mesmo silêncio, o mesmo inexplicável silêncio...” (ibidem, p. 67).

Mais tarde, acentuando o clima de mistério acerca de Marta, Lúcio acrescenta, que, enquanto ouvia uma música belíssima, viu “a figura de Marta dissipar-se, esbater-se, som a som, até que desapareceu por completo” (ibidem, p. 70). E o mais interessante é perceber o modo como pouco a pouco os três personagens se envolvem num romance que delineia caminhos muito tortuosos - é difícil saber a quem Lúcio verdadeiramente ama: a Marta, com quem ele se relaciona, ou a Ricardo, cuja esposa serve de ponte entre os dois? E conforme a leitura vai caminhando, vamos percebendo que Mário de Sá-Carneiro não temeu abordar assuntos delicados, como a homossexualidade, sugerindo a todo os momentos que pode haver entre os personagens algo mais do que uma simplesmente amizade.

Talvez o mais marcante para mim seja justamente esse elemento na trama: a dubiedade do relacionamento entre Lúcio e Ricardo, até porque, como vi, a Marta é figura bastante ilusória, ora oriunda de Ricardo, ora de Lúcio - estes dois, aliás, para mim, são na verdade a mesma pessoa. Toda a trama é, a meu ver, uma grande metáfora sobre a homossexualidade e os desdobramentos que o homem do começo do século passado precisava passar para poder sobreviver consigo mesmo. Lúcio e Ricardo são representações do homem: o primeiro é o homem heterossexual e figura apreciada na sociedade enquanto o segundo faz parte do submundo. Vemos ao longo de toda a trama que Lúcio é o mais contido, mais reservado, sua sexualidade não é questionada por nós; já Ricardo representa o homem em conflito por não poder ser amigo de um homem senão o possuindo (nas suas próprias palavras). E os dois representam o que o homossexual deve ser àquela época: ainda que sua essência seja conflituosa (Ricardo), ele deve sempre estar acima de suspeitas (Lúcio). Aí surge Marta, como uma extensão de Ricardo, a fim de relacionar-se com Lúcio, mostrando que o elo que permite a dois homens estarem juntos é uma mulher: não fosse uma figura feminina a intermediar a relação, decerto já teria havido suspeitas sobre os dois - ou, a meu ver, sobre o um, qualquer que seja, Ricardo ou Lúcio.

Foi o meu grande livro de 2011 - li-o rapidamente, muito voraz, tomando inúmeras notas a respeito de momentos interessantes do livro. Eu realmente o recomendo a todos que querem aventurar-se numa narrativa policial interessante, cheia de mistérios e dotada de uma qualidade narrativa quase inominável. Não consigo nem sequer descrevê-lo bem e analisá-lo com eficiência cansaria a paciência de vocês bem como me faria utilizar 300 linhas escrevendo. Encerro dizendo que é decerto um dos melhores livros que vocês lerão - ou, pelo menos, eu pelo menos acredito que será.

Referência bibliográfica:
SÁ-CARNEIRO, Mário de. A confissão de Lúcio. Campinas: Komedi, 2009.

2 opiniões:

André Procópio disse...

algumas vezes simplesmente esuqecemos que outras terras falam português e que por isso eles produzem também literatura, e o melhor, podemos ler no original.
Nunca li nada de Portugal, conheço Saramago, mas nunca o li, tentei Antônio Lobo Antunes, mas resolvi não continuar (ainda quero le-lo).
Quando se fala de Portugal, mesmo este sendo um país de pouca importância na europa (ao menos no começo do século XX), estão ali pertinho da França, que segundo me disseram na escola, fervilhava no começo do século XX, e é dali que boa parte dos chamados movimentos de vanguarda surgem. Tempos loucos este inicio do século XX, como coloca Hannah Arendt no título de um livro seu "Homens em tempos sobrios". Apesar de época intensa, muito confusa. A respeito do homossexualismo, até onde sei sobre o assunto, não antes de 1960 ou depois, ser homossexual era considerado doença. E enquato se era homo, não se poderia ser feliz. Acreditavam alguns que operando se retiraria "a parte doente" do sujeito.
Desculpe escrever tanto, mas nada sobre o livro, é que não o li. Está na lista imaginária e infinita de livros "para ler".

Abraços!

Gabriel Monteiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.