22 de nov. de 2010

Jogo Perigoso

Gerald's Game. EUA, 1992, 332 páginas (Editora Objetiva).
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Como todos sabem, sou muito fã das obras do escritor norte-americano Stephen King e, às vezes, quando me sobra algum dinheiro, eu não hesito em comprar algum livro dele que ainda não tenho. Então, minha última aquisição foi Jogo Perigoso, livro que há muito queria ler, porque sua sinopse sempre me remeteu a uma intensa viagem psicológica – e o melhor de tudo é que minhas expectativas foram correspondidas.

Não me restam dúvidas de que esse seja um dos romances mais psicológicas desse autor. Toda a situação criada praticamente pede que uma densa análise do interior da personagem seja realizada e King não falha ao nos dar isso. É tão evidente a sua intenção de desconstruir a personagem protagonista em dúvidas e medos que a primeira página do livro já nos mostra o que virá pela frente: Jessie e seu marido, Gerald, estão brincando de um jogo sexual no qual ela é atada à cama, presa por dois pares de algemas. O jogo, para ele, é extremamente excitante; para ela, no entanto, passou a ser desagradável, pois começou a não mais gostar da sensação de submissão que sente. Tentando resolver o impasse gerado pela divergência entre as opiniões, os dois discutem e, ao chutá-lo, Jessie faz com que Gerald, em sobrepeso e fumante, sofra um ataque cardíaco e morra. O grande problema é que ela continua algemada à cama e as chaves encontram-se longe demais.

A princípio, quem lê uma sinopse assim, pensa que nada é tão grave quanto parece sem, nem haja por que se desesperar tanto. No entanto, basta começar a ler para perceber que os problemas que circundam a situação de Jessie são realmente terríveis: estar numa cabana bem longe da civilização é um problema, afinal, muito provavelmente ninguém estará por perto para ouvi-la gritar por socorro. E, na busca por soluções e sem distrações suficientes, Jessie se vê presa consigo mesmo e com as suas várias personalidades – a Esposinha Perfeita, a Bobrinha, a Ruth e também a Nora, isso sem citar as várias vozes que lhe ficam falando na cabeça, causando-lhe maiores preocupações. Penso que o grande acerto do escritor tenha sido conciliar perigos potenciais de perigos psíquicos e torná-los todos muitos reais. A cada momento, tanto Jessie quanto o leitor partilham de um medo persistente, um medo que sabemos ser real.

A sutileza da relação de Jessie com as suas personalidades provém das sensações que ela sente. Um simples cheiro é capaz de remetê-la a um passado no qual acontecimentos desagradáveis lhe aconteceram e causaram-lhe mal por toda a vida. Essa relação da personagem com o seu passado é um dos atos do livro. Essa parte se dedica a nos relevar tudo o que aconteceu a Jessie quando criança – a abuso que sofreu do pai, o modo como ele lhe induziu a pensar que a culpa era toda sua, o jeito como foi obrigado a manter segredo a respeito disso durante toda a adolescência e vida adulta. Stephen King não se limitou ao conceber um passado escuramente doloroso para a personagem central do seu romance: fê-la sofrer bastante com os seus questionamentos a respeito do mundo e também a respeito de si mesma, fez com que ela criasse moldes para viver bem dentro deles, tornou-a oprimida por si mesma e por uma condição – no caso, o guardar segredo -, que, embora tenha sido criado por ela, não seja inteiramente sua responsabilidade.

O segundo ato é aquele no qual vemos a situação em tempo real, que é Jessie algemada à cama, sem ter como sair, sentindo sede, sentindo vontade de ir ao banheiro e ainda diante de problemas mais difíceis – como ser obrigada a presenciar a mutilação do corpo do seu marido morto quando um cão esfomeado invade a casa e começa a lhe devorar e a suposta presença de uma figura estranha no quarto. Nesse momento, toda dor é física e tudo que acontece à personagem causa dor semelhante no leitor. A sede que ela sentiu me causava secura na garganta e a sua tentativa de saciar-se é realmente perturbadora. A presença do cachorro também é muito incômoda, porque ele oferece perigo à mulher, que dificilmente poderia conseguir afastá-la, considerando a sua situação. Não posso me esquecer de que a situação dela também lhe causa problemas físicos tensos: as suas tentativas de se mexer na cama fazem com que as algemas lhe prendam os punhos, esmagando-os; e a posição na qual está – sem poder abaixar os braços, já que está algemada – lhe causa várias dormências e câimbras.

Ainda que eu tenha dividido o livro em dois atos – o que se refere ao plano psicológico e o que se refere ao plano físico –, não posso tratá-los como separados, pois eles se intercalam às vezes na estrutura narrativa, mas na prática, eles acontecem ao mesmo tempo, sendo que às vezes é difícil saber se o fato de estar presa faz com que ela pense em toda sua vida ou se o fato de ela estar pensando faz com que ela imagine que certas coisas estão acontecendo. Essa dubiedade transforma a narrativa em algo ainda mais interessante, pois em certos momentos é difícil diferir o real do imaginário e o leitor acaba inserido nos devaneios prováveis da personagem.

Eu realmente acredito que essa obra de Stephen King seja interessantíssima e totalmente válida. Diferentemente de outras obras suas – nas quais o elemento terror é participante ativo – aqui o pânico se mostra de modos variados: é o medo de si mesmo e também do outro; é o medo de continuar viver e também o medo de morrer; aqui, o terror é a dúvida. A análise proposta pelo autor é laboriosa, mas a dificuldade de analisar Jessie só aumenta o meu apreço pelo livro, que é asseguradamente recomendável.

1 opiniões:

Rafael disse...

Já me falaram (você fala) muito bem desse autor e ele segue uma linha que eu gosto, mas nunca tive disposição pra começar a ler.

Esse livro realmente me interessou, deu vontade de saber como funciona a cabeça da menina e principalemnte como o livro termina, hehe. Vou começar por ele na vibe do SK, assim que passar no vestibular...