Precious: Based on the Novel Push by Shappire. EUA, 2009, 111 minutos. Drama.
Indicado a 6 Academy Awards. Venceu por Melhor Atriz Coadjuvante (Mo'Nique) e Melhor Roteiro Adaptado.
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"O amor nunca fez nada de bom para mim. O amor me bate, me estupra, me chama de animal, faz com que eu me sinta inútil, me deixa doente" - Clareece Precious.
Todos os anos, alguns filmes independentes ganham destaque na mídia. O filme de 2010 foi Preciosa, baseado num livro escrito por Shappire, que narra a vida difícil de uma garota negra e obesa de 16 anos que constantemente é estuprada pelo pai, de que já tem um filho e de quem espera o segundo. A mãe lhe trata muito mal, tornando-a escrava de sua própria situação dramática. Recém-expulsa do colégio onde estudava - e mesmo assim semianalfabeta -, Preciosa busca uma segunda chance em uma nova escola, indo contra a onda de desgraça que parece ser sua vida.
Não me restam dúvidas de que o primeiro fator que chamou a atenção da crítica e do público para esse filme foi a roteirização dramática. O livro de Shappire era dramático o suficiente para render um filme, que decerto intensificaria o drama vivido pela personagem central. Desse modo, todos ficariam impressionados - e de fato ficaram - com a história de Clareece Precious Jones. Se tem algo que eu já aprendi é isso: a Academia adora histórias intensamente dramáticas. Parece que quanto maior a desgraça, mais fácil tocar o coração daqueles que selecionam os filmes que serão indicados numa determinada cerimônia. E outra coisa que também já aprendi é que as pessoas - cinéfilos ou não-cinéfilos - adoram são filmes do gênero dramático. Isso talvez signifique que buscamos em certas obras uma reflexão que nos leve à autoajuda: se Preciosa - que é obesa, negra, analfabeta, foi estuprada e está doente - consegue lidar com uma situação complicada, nós então provavelmente não teremos do que reclamar diante de um problema qualquer, como o rompimento de um namoro. E também sei que observar a vida de uma pessoa que parece estar imutavelmente em complicações faz com que nós nos sintamos emocionados, principalmente quando as personagens conseguem dar a volta por cima, como é o caso dos feel-good movies.
Antes de ver o filme, muitas pessoas recomendam-no para mim, adjetivaram-no tanto que o tomei por uma obra-prima da tragédia. E também reafirmei todos os meus pensamentos que comentei acima. A única exceção fica por conta de Preciosa ser um filme feel-good; definitivamente, não é. Preciosa é bem pesado e tão assustadoramente realista que o espectador fica tenso ao assistir certas cenas. Não creio que o roteiro seja realmente muito bom. Creio apenas que tem um desenvolvimento correto e, às vezes, meio lento e isso me fez pensar que o filme tivesse mais de uma hora e cinquenta minutos. É difícil pensar que tanta coisa ruim possa acontecer a uma única pessoa, eu chego até a pensar que isso é ficcional demais. No entanto, qualquer pessoa que acesse o seu conhecimento geral de mundo saberá que a vida de Preciosa é perfeitamente verossímil e é exatamente por isso que ficamos mais chocados: as cenas que vemos somadas àquilo que sabemos ser verdadeiro nos coloca diante de um mundo desumano e injusto - o que a garota fez para merecer tudo que acontece com ela?
Sinceramente, acho que, embora tenha cenas cruéis, o roteiro não é muito desenvolvido. Ele me parece meio breve e implícito e, para que eu me emocionasse, tive que recorrer à minha noção de realidade. Gostei, no entanto, de como Preciosa é trabalhada. Sua personagem é bastante rica: uma garota na situação dela tem comportamentos tendenciosamente autodestrutivos. Isso, no entanto, não diz respeito às atitudes da garota, que, bastante sonhadora, enxerga sempre uma oportunidade de melhora. Quando somos apresentados aos seus sonhos, nós percebemos que ela se reconhece como pessoa e, simultaneamente, busca afastar-se de si mesma. Numa cena, vemo-la, tal como é, dançando com alegria para um rapaz com quem usualmente sonha; noutra cena, enquanto se arruma para ir à escola, Preciosa se olha no espelho e lá vê uma garota magra e loira, o tipo popular e elogiável, evidentemente o oposto do que Preciosa é. Mary Jones, mãe de Preciosa, é decerto uma das criaturas mais terríveis já mostrada nas telas. Ela é um carrasco obstinado a fazer sofrer; em vez de matar, porém, ela prolonga a vida, de modo que a agonia também seja prolongada. Ela sente ódio pela filha, odeia-a tanto quanto pode e lhe culpa por tudo: pelas pessoas que tocam insistentemente a campainha, pelas visitas inesperadas, pela resistência da assistente social em liberar o cheque da pensão mensal. Ela, contudo, amou a filha um dia. Quando Preciosa abre o seu álbum de fotografias, vemos a figura de Mary segurando Preciosa ainda bebê nos braços e a mãe observa a filha com notável felicidade. O mais interessante é que essa cena é mostrada depois de já termos visto o comportamento monstruoso da mãe e isso parece acentuar a nossa ânsia por respostas - o que levou aquela mãe a odiar a própria filha?
Não pude deixar de relacionar a personagem de Mo'Nique à personagem de Mary Tyler Moore em Gente como a Gente - ambas são mães frias e distantes, que não nutrem qualquer amor pelos respectivos filhos. Não pude, também, deixar de correlacioná-las quanto aos seus comportamentos e às suas concepções de realidade: elas crêem que, à sua maneira, amam suas crianças. A única diferença entre elas é o fato de que Beth é uma versão educada e elegante (e também mais bonita) de Mary Jones. "Que mãe odeia o próprio filho?", é a pergunta que Beth faz a seu marido, quando este lhe pergunta o porquê de ela odiar Conrad, seu filho caçula. Ordinary People, de 1980, não nos dá resposta para essa pergunta; Precious, porém, nos responde bem: o ser humano - mesmo uma mãe em relação ao próprio filho - é egoísta. Mary Jones é tão exageradamente egoísta que responsabiliza sua filha por tudo o que deu errado em sua vida. Como o seu ideal de vida não foi atendido, ela se ocupa em destruir o ideal da filha. Ainda que esteja na função de coadjuvante, Mary Jones é uma personagem tão rica quanto Preciosa e ambas são decerto o destaque do filme.
A respeito da direção, realmente penso que Lee Daniels fez um grande trabalho. Como diretor, ele conseguiu agrupar uma série de bons elementos numa película que, apenas pelo seu tema, já é extremamente forte. Outro grande acerto do diretor foi não deixar o filme ainda mais pesado. As cenas de choro e emoção são feitas de modo a sensibilizar e não destruir o psicológico de quem assiste. Concordo, portanto, com a sua indicação como Melhor Diretor. Acho que Gabourey Sidibe e Mo'Nique enfrentam um pequeno problema: suas personagens são muito maiores do que as interpretações das atrizes. Ambas defendem bem as suas personagens, mas eu realmente fiquei com a sensação de que o grande mérito é de Preciosa e de Mary Jones, não de Sidibe e Mo'Nique. Dentre as indicadas em Melhor Atriz, creio que Sidibe não tinha muitas chances - acredito que a disputa estava entre Sandra Bullock, que acabou levando o prêmio, e Meryl Streep, a quem a Academia deve um Oscar há muito tempo. Em relação às indicadas em Melhor Atriz Coadjuvante, Mo'Nique me parece ter um grande destaque. Faço a ressalva, no entanto: se Julianne Moore tivesse sido indicada por Direito de Amar, eu concederia o prêmio a ela e não a Mo'Nique.
Preciosa é um filme que incomoda o espectador em alguns momentos; é como se fôssemos corrompidos por testemunhar as constantes agressões à garota sem poder protegê-la. No seu intento de chocar, o filme obtém sucesso. Provavelmente é um filme que será lembrado por algum tempo, principalmente quando nos referirmos às atrizes centrais: Preciosa será, potencialmente, a grande obra das carreiras de Sidibe e Mo'Nique. Que chances, afinal, elas têm de conseguir outra oportunidade de uma boa interpretação? Infelizmente, o preconceito ainda existe e, só para exemplificar o meu comentário, a própria Academia, ao longo de oito decênios de entrega de prêmios, só reconheceu uma atriz negra (magra e bonita, coincidentemente) como melhor atriz.
3 opiniões:
Man, creio que essa seja uma de suas resenhas mais bem escritas! Parabéns!
Nunca havia pensado nessa relação que você traçou com Ordinary People. Sim, as duas são mães que não amam suas crias. Com a diferença que você salientou: Mary é uma versão de luxo de Mary Jones. Agora, pensando um pouco sobre o assunto, lembrei da cena em que as duas assistem La Ciociara, um dos raros momentos leves, onde as duas brincam de refazer a cena. A personagem da Sophia, ao contrário, é mãe de uma outra espécie.
Reforço o que falei aí em cima, meu caro! Essa é uma de suas melhores resenhas. E tenho dito.
Abração!
Estava quse concordando que esse seria os únicos papéis das atrizes principais do filme, quando vi que Gabourey está fazendo uma participação em uma nova série da Showtime. Porém, também acho que esse será o único grande papel de ambas.
Gostei muito do filme, a direção foi acertada e o roteiro (mesmo sendo adaptado) é incrível.
Quando ao oscar da Mo'nique, reforço que nenhuma das concorrentes chegou a ameaça-lo, e mesmo se a Julianne Moore concorresse, eu ainda premiaria a ganhadora.
O paralelo com "Gente como a gente" ficou bem legal mesmo.
Precious não é perfeito (a estética da realização é o que mais incomoda), mas é um objecto único e singular, num universo cinematográfico cada vez mais igual entre si. É um trabalho respeitável, mesmo que incomodativo, que dá espaço à reflexão. Mas primeiro e antes que enquanto espectadores possamos reflectir no que vimos, precisamos recuperar do choque e dos constantes murros no estômago.
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