30 de jul. de 2010

A Metamorfose

Die Verwandlung. República Tcheca, 1912, 94 páginas (Coleção Abril - Clássicos).
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A primeira pessoa que me suscitou a vontade de ler esse trabalho de Kafka foi uma colega do cursinho, que comentou o quanto havia achado chato essa obra. Pela narrativa dela, eu realmente achei que pudesse mesmo ser uma obra de pouco valor literário e sem grande relevância, mas mesmo assim decidi lê-lo e formar minha própria opinião, com base em algo realmente concreto: o próprio texto.

Gregor Samsa é um caixeiro-viajante que, numa manhã, acorda transformado num imenso inseto. A partir de então sua vida muda completamente, já que ele não pode mais realizar suas atividades como antes e também tem que aprender a lidar com os seus familiares, que, embora o vejam ainda como membro da família, temem que ele lhes provoque algum mal.

Acho que a primeira grande característica da narrativa de Kafka é o modo simples como a obra foi concebida. Sem grandes figuras de linguagem, sem grandes floreios, a obra se apresenta clara e objetiva, indo diretamente ao ponto. Tanto é que na primeira página já somos apresentados à nova situação de Gregor: “ventre escurecido, acentuadamente curvo, com profundas saliências onduladas, (...) inumeráveis pernas, terrivelmente finas se comparadas ao volume do corpo, agitavam-se pateticamente diante de seus olhos” ¹. Sob seu novo corpo, completamente metamorfoseado, Gregor depara-se com uma série de dilemas, muito bem aproveitados no texto. A primeira grande preocupação do personagem é levantar-se, vestir-se e ir trabalhar. Mesmo diante da sua nova forma corporal, o seu primeiro pensa se volta para o bem-estar da família, já que a sua falta ao serviço implicaria numa potencial demissão – o que afetaria o rendimento salarial com que Gregor, o pai, a mãe e irmã vivem. Desse modo, o autor evidencia a vertente altruísta de seu personagem: Gregor é um homem que coloca o conforto dos outros a frente do seu próprio. E assim, para esse personagem, não importam quais situações surjam, sua família é sempre posta em primeiro lugar, já que ele tem para si o pensamento de que haja reciprocidade.

Interessante notar também o lado da família. No começo, todos se assustam com a criatura com a qual se deparam. Sabem que há um inseto gigante vivendo no quarto ao lado – e o pior é pensar que esse inseto seja da família. Aceitam-no, porém. Persistem no pensamento de que logo Gregor retornará à sua forma humana, mas, diante da sua duradoura e aparentemente permanente forma entômica, culpam-no pelo ocorrido. Vale ressaltar o lado antimoralista da família de Gregor. Quando ele é o irmão e quando está tudo bem, com ele trabalhando para sustentá-los, consideram-no um familiar; perante seu novo corpo, que o impossibilita qualquer coisa (até mesmo a comunicação, já que ninguém entende a sua linguagem), tomam-no como empecilho, creditando a ele os problemas pelos quais a família tem passado. Numa passagem muito forte, Grete, a irmã, diz ao pai: “diante desse monstro, não vou pronunciar o nome do meu irmão. E tem mais: precisamos nos livrar dele” ². Mais tarde, afirma categoricamente: “poderíamos continuar vivendo com o verdadeiro Gregor em nossa memória, para sempre. Mas esse animal nos persegue (...)” ³.

O outro grande acerto do livro é propor um questionamento sem explicitá-lo diretamente. É curioso quando analisamos a situação do personagem central dessa obra e conseguimos nos colocar na mesma posição que ele. Jamais acordamos na forma de um inseto de antenas, que sobe pelas paredes, se sente atraído por comidas estragadas. No entanto, muitas vezes nós nos tornamos diferentes daquilo que nossa família espera de nós e é justamente nesse momento que nós nos tornamos “Gregor”. A genialidade do autor está em deixar implícita a sua mensagem e obrigar o leitor a buscar na mente uma situação que possa ajustar a tão não-convencional situação de Gregor à realidade. É necessário certo conhecimento de mundo para que se saiba a quão metafórica a obra é. Desse modo, creio que seja perfeitamente possível dizer que a narrativa de Kafka aborda um tema real e corriqueiro, que é a quebra de expectativas existente entre um grupo de pessoas.

Considerando a obra toda, que é bem curta e que atinge o leitor de modo impactante, acredito que A Metamorfose seja um texto que merece ser lido. Não merece, porém, uma leitura rápida e desatenciosa, incapaz de perceber todas as alusões presentes no relato. Essa obra literária, que é simples mas não é simplória, detém um elemento que confirma a minha suposição: aquilo que vai além do natural é tratado com muita naturalidade, demonstrando que os personagens são capazes de reconhecer nessa nova forma de Gregor uma característica maior – ele se tornou asqueroso, e isso nada tem a ver com o fato de ele ter se transformado num inseto. Leiam o livro com uma visão ampliada, que tende a se ampliar ainda mais. E, só para constar: o autor não deixa claro em qual animal Gregor se transformou, logo não sei porque muitos adoram afirmar que ele virou uma barata.

Luís
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Notas:
1) Coleção Abril - Clássicos, página 11.
2) Coleção Abril - Clássicos, página 69.
3) Coleção Abril - Clássicos, página 71.

1 opiniões:

Lari Bohnenberger disse...

Adoro Kafka. Metamorfose foi o primeiro livro dele que li, e lembro que fiquei bastante transtornada, justamente pelas indagações incitadas nas entrelinhas da história.

Muito boa a resenha.